Cheguei, mas não é meu corpo que toca São Paulo;

é o íntimo, esse que viaja nos intervalos do tempo, que retorna com a lei da gravidade da memória. O silêncio das fisionomias reverbera nas ruas, como um vasto e mudo oceano, onde a espuma dos meus pensamentos se quebra.

As lembranças, tão alagadas de significado, tornam-se danificadas, pois tudo que eu percorro, tudo que agora me raia, escapa àquelas emoções que se atrevem a raciocinar. O som, pendurado no ar, mora na sombra das coisas não contadas, e é através do silêncio que a cidade se revela.O que a língua não devora, os olhos percebem: o movimento da vida sem nome, o espírito das coisas que se arrastam invisíveis, mas presentes, entre cada passo que ofereço.

São Paulo, velha cara metade que, por anos, permaneceu em minha carência, agora se torna jovem. Ao olhar para ela, vejo não mais a cidade popular, mas uma terra onde tudo é inédito, onde cada esquina é uma carta nunca lida, onde cada prédio ereto é um monumento àquilo que me falta entender.

O horizonte parece alongado, inatingível como o amor que me foge, uma promessa sem forma, uma miragem que nunca se concretizada de algo maior do que a própria saudade.

O fogaréu que assisto nos olhos dos paulistanos, aceso pela rotina, pela pressa, pela eficácia do mundo que aqui pulsa, é o calor que incinera também dentro de mim.

Um vício que consome e transforma, que me liga e me molda, que me dilui e restaura.

E o ar, o ar de São Paulo é denso, quase gruda na pele! Ele não é apenas o que respiro, mas o que balanço, o que brilho. Ele não precisa ser aceito para ser sentido, como a poesia que gere, etérea, entre os animais. Ele me toca como uma mulher que não fala, que te espera no final do dia, mas não diz o que sente. Você sente, e isso basta.

Ele se desvela nas pequenas coisas, no suspiro de um mendigo ruído, na satisfação do cabelo laqueado da madame, na assombração de um vulto impaciente.

O pensamento da cidade, esse camarada que viaja mais rápido que a luz e que, ainda assim, não consegue alcançar o fim. Corre mais do que os carros na Marginal, mais do que a gente tentando encontrar um sentido para a vida. E ainda assim, ele não sabe onde está indo. Ele se perde em sua própria velocidade. A verdade nunca vem primeiro, sempre chega tarde, com o cheiro de café queimado e a sensação de que a vida não faz sentido. Eu pensei, pensei, e ainda não entendi nada. O olhar, esse fiel escudeiro da mente, falha com frequência, tornando-se cativo de suas próprias ilusões. O que assistimos não é o que é. O que acreditamos, muitas vezes, é um chute que nos criamos. O pensamento é leopardo, mas a verdade… a verdade é sempre mais lenta, mais profunda, mais calada.

Esse é pecado paulista? É a ignorância agasalhada de certeza? Ela nasce onde o amor não habita, onde o pouco-caso toma a forma de ferro e aço, onde o eclipse de compaixão envenena os corações. Ela se devora em tudo o que não sabemos e inflama na alma da nossa própria fragilidade. Esse desgosto delicado e transparente, que gasta por dentro, que morde e ainda assim nos inventa mais inteiros? Sampa não se pode batizar, apenas experimentar. Sua dor é a amostra grátis daquilo que não se vê, mas se sabe em cada poro.

A destruição aqui, porém, é um enigma, uma fé ignorada, um duende que nos persegue na rua vazia, na esquina parasita, à medida que o cimento avança, implacável. O estrago não é um término, é uma metamorfose, uma transformação que não podemos abraçar com as mãos, mas que, em algum momento, nos tocará de uma forma que não poderemos prosseguir.

E, enfim, a solidão… esse refúgio que muitos aqui receiam, mas que é, paradoxalmente, a fonte de maior beleza de cimento. Ela é o edifício do concreto ser, a avenida onde o âmago se revela, onde a alma se prevê sem os semblantes de pedra. No berro da avenida paulista, o ser se localiza em sua insanidade, estrondos, sem distrações. Na pressa do eterno, o instante que se expande, que se dissolve e que nunca se destrói.

A vida aqui, em seu bagaço constante, é o movimento de um infinito que não podemos desviar, mas que está em cada agitação, em cada respiração, em cada passo que damos nesta cidade, neste corpo, neste mundo.

Ela está em tudo, em cada gesto, em cada olhar embananado na multidão. Ela é sempre, e, ainda assim, jamais se revela completamente. Cheguei de novo. Mas quem é esse corpo que pisa São Paulo? Não sou eu, não sou mais eu. É o resto de mim, o pedaço que ficou pra contar história e nem sabe direito o que dizer. As esquinas têm odor de asfalto e bar, e talvez isso seja tudo o que eu consigo agora: sentir a cidade, sentir o segredo que ela espelha, com suas luzes piscando em lamento, com suas assombrações gritando sem voz. Eu não falo. Eu engulo os verbos, engulo a cidade inteira, tentando entender o que se esconde nas dobras desse matagal de argamassa. A calma é funda aqui. Ele ecoa nas vielas, no rosto de cada vagabundo, na ligeireza dos taxistas. A verdade não se diz, ela se observa. Porque o que não se diz, é o que fica.

A cidade não me reconhece e eu, bem, eu não a distingo mais. Era como um amante que você deixa na prateleira, até que um dia volta e encontra o cheiro do perfume. Cada esquina é um retrato estilhaçado de algo que eu já vi, mas não sei se vivi. A cidade parece nova e velha ao mesmo tempo, como se estivesse teimando em se reinventar, mas o tempo não deixa. O amor é assim, não é? Como essa fumaça das ruas, os olhos que queimam de cansaço, esse calor humano que não é humano, é suor, beijo e poluição. A mesma coisa que queima na pele dos paulistanos. Ela veste um terno surrado e sorri como se tudo estivesse bem. Porque a paixão, no fim, é o que a gente tem, é o que nos resta.

Essa cidade, com seus dentes afiados e seu coração esfumaçado, que não para de respirar. O fogo, o mesmo calor do asfalto que me queima os pés, o mesmo calor que arde dentro de mim, dentro de cada esquina suja, dentro de cada copo de cerveja ordinário. Cada chama é uma paixão não dita, cada cigarro aceso é uma promessa quebrada. São Paulo não apaga a chama, ela só a espalha. E é isso que ela faz: nos consome, nos masca, nos engole, mas ainda assim, nos deixa querendo mais.

E a saudade… essa velha dor, que se cola à epiderme como uma cicatriz que não cicatriza, essa dor que é mais transparente do que qualquer lágrima, mais sangrenta do que qualquer corpo ferido. Ela é um fio invisível que me conecta a um lugar que nunca mais poderei voltar. Ela é o vazio do que não aconteceu, do que não vai acontecer. São Paulo me faz sentir isso. Me faz sentir a saudade de algo que eu não sei o que é. Talvez daquilo que eu deixei em algum ponto no tempo, em algum ponto perdido entre o caos, a ausência e rua que não termina nunca.

E a vida em São Paulo. Eu vi a vida, eu respirei a vida e, em algum momento, soube que ela está em tudo. Está no trânsito, no lixo nas ruas, no cheiro do pão quente. Ela não é o que vemos, mas o que sentimos enquanto a cidade respira. A vida aqui é aquilo que se esconde atrás do caos, atrás do barulho, atrás da fuligem. Ela é o que a gente não entende, mas o que a gente é.

Contrato de Sangue

No porão onde os pensamentos apodrecem em jarros de vidro,

caminha um sonho— não um ser,

mas um eco com patas de caranguejo,

segurando na boca a cobrança que ninguém pediu para ouvir.

Ele fala, e as palavras escorrem como óleo queimado:

"A casa que você habita, esse labirinto chamado coração,

não é teu refúgio, mas um dublê estilhaçado

onde cada pulsação reflete tuas promessas abortadas.

O mofo? São os sussurros das palavras que não digeriu.

O teto que cede? A gravidade dos erros que mastigou.

Não há misericórdia nos gestos dessa criatura sem olhos,

apenas o som metálico de asas que não voam.

"As janelas, embaçadas pela tua covardia,

não deixam entrar a luz que espia lá fora,

e o jardim? Um cemitério onde as ilusões enterradas

brotam como dedos retorcidos.

A sombra acende um cigarro invisível — ou talvez um delírio,

e a fumaça se dissolve em vultos de pássaros

que nunca aprendem a migrar.

"Paga o preço da tua indiferença com silêncio,

e ainda tem a audácia de chamar isso de sobrevivência.

Olha ao redor, inquilino das ruínas,

e vê as rachaduras na tua carne de papel."

As paredes começam a ranger como cicatrizes famintas,

e o chão, coberto de ferrões, grita com vozes ancestrais.

"Deixa tudo cair, se quiser. Deixa que a poeira

engula o que resta de tua valentia morta.

Mas lembra: o preço de assistir ao próprio colapso

é mais do que pode pagar com teus lamentos aguados."

Por um instante, a sombra hesita —

um desejo grotesco lambe entre suas garras.

"Não sou o monstro que pensa,

sou o zelador dos teus destroços.

Fecha as rachaduras com tuas unhas quebradas.

Planta algo nesse tombo—

um êxtase ou uma tortura, não importa,

mas planta. Faz algo além de escapar."

E então, o sonho se dissolve num rastro de borracha apaixonada,

deixando um contrato escrito com tinta de impulso,

cada linha gozando como um amor desalmado,

cada cláusula flutuando no ar como música virgem de notas.

No fim, o coração não é lar nem templo.

É uma jaula oscilando no profundo,

um campo de trabalho onde os destroços da vida

disputam contra o vazio.

E o preço do descuido não é a morte,

mas o peso insuportável de não viver.

Pela cortina imóvel do meu banho em sombras,

ANGÚSTIA — forma nua — desliza,

Gestos como serpente que beija o próprio fim.

Seu corpo dança em caracol de água e dor,

Uma estranha procissão entre beleza e cicatriz.

Eu, em murmúrio, fito-me num espelho que não vejo,

Converso com tudo em mim, menos comigo.

O reflexo, guardião das verdades mal ditas,

Observa:

— Ela é selvagem, você é cristal,

Questionando por que nasceu pedra.

ANGÚSTIA, sob a enxurrada, afaga sua história —

Cicatrizes de fogo, asas queimadas:

As marcas que outrora foram voo.

Ela caminha pela casa das memórias,

Cantando canções que parecem dizer

“Teu amor não sabe amar.”

— Foi breve? — pergunta-me o espelho.

Como as notas de uma melodia que escapam,

Segundos eternizados,

E eu, sem voz, sinto o ar mais denso,

Como se pronunciar fosse cair num abismo.

Diante das águas que purificam,

Ela oferece o rosto ao batismo do vapor,

Procurando redenção, leves vislumbres de paz.

O reflexo insiste:

— Amar é perder-se e seguir perdido,

Como quem escolhe doer porque vale a vida,

Como quem entende que certos seres, imóveis,

Nos suspendem e nos tornam etéreos.

Eu me pergunto, sozinho:

Como achar palavras para ser acolhido,

Se mal suporto a parte dela que já vive em mim?

O enigma de sua presença — a voz,

O olhar,

O cheiro de mistério que atravessa paredes,

Tudo me desconcerta.

Talvez seja a mais bela entre as incógnitas,

Porque não precisa ser compreendida,

Somente sentida.

Imagino o universo qual guardanapo infinito,

Rasga os fios de bocas perdidas,

Cada linha, uma ideia, um fragmento de existir.

Nós, viajantes, puxamos desejos dispersos,

Sempre falhando em ver

A ação maior do Ser.

Mas nessa falha, nessa perpétua fronteira,

Está a fome de saber,

O motor oculto que nos faz humanos.

De súbito, ANGÚSTIA me olha através da cortina,

Seus olhos encontram os meus,

E pergunto-me se estou aqui ou lá.

Ela pronuncia:

— Está aí?

E eu, inseguro, devolvo:

— Sempre estive.

Então o reflexo se cala, dando espaço à coragem:

Solto as palavras guardadas

Em décadas de medo.

Digo que ela é enigma,

harmonia sem notas,

E que talvez o sentir seja mais vital

Que a ânsia de desvendar.

Ela sorri, trazendo dor e compreensão no mesmo gesto,

Como se o amor fosse também desistir de saber.

Cortina que se abre, vapor que escoa,

E a água termina.

Ela parte, deixando-me diante do espelho

Onde só minha imagem comum persiste.

E descubro, num lampejo, que a sabedoria

Talvez more na fronteira do não-saber,

E que a limitação do humano

É também o que nos faz espichar.

Subitamente, a cena mergulha em novo ato:

Um deserto irreal surge,

O horizonte retorcido pelo tesão,

E dentro do meu peito há uma “fome dos Sentimentos”.

Que se encaram

Num duelo de verdades e ilusões.

O espelho colossal flutua acima de dunas escuras,

Refletindo apenas distorções,

Enquanto o sol se desfaz em cores irresponsáveis.

ANGÚSTIA, queimada pelo brilho que julga ser verdade,

Se aproxima de um EU, que se admira soberano:

— Nunca enxergou a claridade, apenas

A projeção do que julgava luz.

Tua pose te consome, mas é sombra travestida.

Eu? Carrego chagas que falam de um brilho sincero.

A razão retruca, sob a máscara da grandeza:

— Eu fabrico a realidade, controlo as sombras,

Sou o centro que tudo une.

ANGÚSTIA ri em amargura:

— Se fosse tão grande, por que teu reflexo

É a única coisa que te sustenta?

Sou eu, a memória do real,

E você é o operário de mentiras

Que desabam ao menor toque de autenticidade.

Trincam-se vidraças do horizonte,

Cada fissura é um rastro de vácuo.

O espelho começa a rachar,

Como se a própria ilusão não se sustentasse.

Razão recua, aterrorizada

Ao ver sua imagem se esfacelar.

ANGÚSTIA, em lampejo final, declara:

— Você não é tudo, mas pensa ser.

E assim, sem o espelho,

Tua figura se torna pó.

No fim, apenas as possibilidades

Persistem no ar.

E eu, solitário,

Compreendo que a escuridão

É potência — abrigo sem fim.

Despedaça-se o reflexo

Num dilúvio de fragmentos reluzentes,

Estrelas cadentes em deserto abstrato.

E o EGO, sem luz própria,

Fenece num sussurro,

Como um sonho que acorda.

ANGÚSTIA, então, resta sozinha,

Feridas cintilando no limiar

Entre o real e o invisível.

No vazio que se alonga,

Ela sussurra,

E seu eco reverbera nas areias do nada:

— Somos ondas,

Nascidas para colapsar

Em qualquer forma —

Ou talvez em nenhuma.

E eu, que assisto a tudo,

Regresso ao escuro do banho sem água,

Sabendo que a verdadeira compreensão

Está em aceitar

Que viver é navegar

Entre véus e abismos,

E que o espelho se quebra

Para que algo em nós renasça.

Enquanto a última luz se apaga,

Paira no ar um presságio de constelações,

Um sutil relampejo de segredos.

E assim, em meio ao infinito

De um universo que não se explica,

Descubro que a grande poesia do ser

É nunca estar completo,

Mas insistir em querer testar a perfeição.

Sobre a noite em que hospedei o Sol no peito

Abrigado em um trecho raro do âmago, ali, bem no tutano do afeto, ninava a alma no exílio dos enganos.

Após cruzar o longo corredor das veias dos fantasmas da certeza, lá estava eu, sentado no crânio do que ousei crer até então.

Do porão do íntimo, sonegava o externo e, no pontiagudo inverno, partia ossos da razão.

Sem inferno, nem tampouco perto do empíreo: tão-somente “um meu e o reverso”,

debaixo do armazém da última aparência.

Esvaeci de todo azul e atravessei até minha coincidência imaterial.

Agarrado no rabo de um atalho, trepei no dorso de um poema-alarme;

desapareci em um porta-retrato, onde ventura e aflição se abraçavam

para caber na foto do coração da paz.

Onde o tudo se disfarça de anão, pescando elevação na maré do vácuo.

E eu? Ali, imóvel, mesmo estando aqui também, feito um dúbio além.

Da cozinha, sem fome de nome, escutei um convidado.

Esfolado, nem aguardou: escorregou ligeiro até mim,

como filho de uma lágrima com um cometa, invadindo-me pela fenda dos rebentos.

Era uma luz molhada, um lume ensopado no desalento.

Dei por mim e já secava as felpas de susto do sol.

Minguado astro — jamais o supus tão vacilante.

Graúdo talento de flama, pranteava em minha lareira a própria lama.

Tremia com a estreia de um sangue-frio escorrendo em sua massa,

fios de raios embebidos em um dilúvio de almas e fumaça.

Existir coça; com unhas a rasgar as costas, o sol se consumia.

Servi ao ardor um cálice candente e ele, sacudindo as melenas, resmungou:

> “Jovem inseto, os bons tempos retornaram?

> Seremos novamente a mesma fagulha de uma mesma explosão?

> Ou seguimos partidos em prepotentes estouros humanos?

> Sou apenas o sol, ou voltei a ser todos vocês?”

O silêncio, que assistia a tudo pela fresta de um grito, soluçou.

O destino, atento ao discurso do papa de luz, decifrava nossos prantos,

riscando a figura de um arco-íris abatido, estampado na moeda espacial.

A aura, na vidraça, ao notar que o gênio ardente duvidava da atmosfera,

ateou som numa gaita de fósseis de estações em extinção.

Sem um sol feliz, até o ar se curvava no bar.

A multidão de dores é transparente, porém indecente:

aponta a paz no céu qual astronauta sem nave.

Ver o sol lacrimejar é triste como ver o demônio

trocando estrelas por moscas.

Tudo segue frígido e veloz entre o vazio e eu.

Pleno, no instante do tombo, peço à sombra que agasalhe o sol.

Contudo, todo astro tem sua energia súbita;

mesmo sem estima, o sol, encachaçado, ascendeu acima do balcão.

Do gênio de lume, nasceu uma dança de entreolhares tropicais.

Não tolerava assuntos com fulguras forasteiras.

Depois de certas taças, já me contava que não se tocava havia anos-luz.

Labaredas pra cá, centelhas pra lá, aliciou todo seu assombro,

sem cinismo de viver na orbe como protagonista.

De fato, aquela estrela “down” passou a noitada me transformando:

“Todos nós, vagalume, somos apenas um céu de ilusões.

Todos nós, gentil verme, somos um pêlo encravado na virilha do impossível.

E a vida, homem, é um blefe do extraordinário infinito.”

Eu, que quase nunca existi, babava espantos naquele protesto.

Não via o sol como um rockstar de um sucesso só — o fogo.

Eu e o sábio amareleço assistimos, por vezes, ao trem de Satã dando ré no perdão,

toda vez que se descobria preso na janela multiplicada do artesanato de Deus.

O milagre sempre está um passo à frente do caos.

Por que, para os seres, tanta velocidade e desapego semeiam o mal?

O sol, cansado de a lua uivar aos mortais suas intimidades entre quatro naturezas,

largou-se no sofá, queimando um cigarro e tragando um maço de dilúvio após o outro.

Tentei me restaurar para jamais ver uma sina jogada na sarjeta.

Era impossível!

Aquela irrealidade de poeta reverberava legítima em meu espírito.

Após horas de trevas, o sol se lembrou do céu, mas o paraíso já estava ao avesso.

Era complexo pressentir o asco solar.

Imagine o tormento de uma cor que não dura!

Assim era a cobiça da solidão que eu e o astro intuímos na penumbra.

Nessas horas, o mundo mais se assemelha a um baile de berros,

enquanto a esfinge da existência explode no piscar do Onipotente.

Nos vimos no fundo de nossos ossos, até sangrar todo abandono.

Então veio a calma. Era ela que raiava nitidez!

Seu cachecol florescente aquecia o ruído que bancava meu peito.

Um tanto sábia demais para mim.

Tentamos ser amistosos.

Suspeito até que, no fim, nos tornamos parentes.

Se deixar, a serenidade passa horas calculando apenas suas próprias histórias

de lugares onde nunca estive, de paixões que, para mim, jamais nascerão.

Cansa um bocado!

Fala com as orelhas.

Prefiro sentidos que se embaralham em outros:

uma viagem de trem nos trilhos de um beijo,

a língua dando passos na pele do Etcétera.

Terapia em grupo de nervosos faria bem ao silêncio.

Dividir os próprios horrores reforça a coragem.

BUM!!! Sacode a luminária do meu ser.

Alguém bateu um pé apaixonado no peito da porta.

Que índole chegou íntegra até mim?

Finjo não ouvir nada que venha de fora.

Mas pode ser só um rio a vender correntezas de esperanças congeladas.

Seria um bom investimento brotar novidades nessa terra.

Vai que almas boas despertem famintas no próximo verão.

Pena que não tenho onde conservar tais inovações.

A saudade da infância já consumiu todo pólen da minha ousadia.

Ainda mais com este sol todo ferido, pitando guimbas de um céu cinzento.

Ele segue insano, batizando a lua de cadela.

Não faço mais perguntas nesse estado cáustico.

Rolou uma chacina no espaço e isso traumatizou o que não tem fim.

Todos os universos estão desempregados.

O Infinito quer vingança; o desespero se espalha no chão.

Caiu o preço do horizonte; houve fuga num zoológico de angústias.

O sol se exaure e apaga um pouco.

Sonha que sonha, chora por chorar incêndio.

Dorme, leve, sendo o próprio cobertor.

A aragem do crepúsculo relaxa as mazelas de um deus quente.

Ao alvorecer, o sol de ressaca se ergue mais confiante;

beija-me a testa espectral com ternura

e parte para carpir sorrisos de ETs nos asilos dos buracos negros

de todos os corações do mundo.

Guardo na algibeira do poeta a noite em que o sol se expandiu aqui,

numa camaradagem de fogueira,

deixando à mostra nossas coincidências tão humanas.

descobriu-se à beira de um precipício de ilusões.

Sentiu no sopro marinho o agravo do sal,

cortando-lhe a face como lâminas gentis e cruéis.

Ali, à janela de um quarto que outrora fora morada de ternuras,

percebeu quão vãs são as esperanças nutridas

por um coração que ofereceu mais do que recebeu.

Caramba, quanto lhe pesou a revelação tardia!

Os anos corridos, as promessas brandas,

tudo se fez teatro sem enredo,

cena muda num palco de espectros.

Se outrora lhe parecia que no brilho daquelas pupilas

mora(va) a essência de um porto seguro,

agora sabe quão raso era o reflexo,

fruto de um espelho enganador

que jamais lhe correspondeu.

Assim, num clarão que inunda a aurora,

pôs-se a juntar lembranças como quem empilha pedras

nas esquinas de uma rua esquecida.

A cidade, com seus arcos e promessas,

já não lhe entoa cantigas de chegada,

mas apenas o murmúrio de partidas necessárias.

Guarda no silêncio o adeus que não ousa pronunciar em voz alta,

pois o fim dispensa explicações

quando o amor falha em ser.

Não verte mais lágrimas, pois as reservas do pranto secaram

ao constatar que a ternura entregue não encontrou pouso.

O coração, outrora manso, percebeu-se vivente de uma fábula

onde o protagonista jamais existira.

Um vulto de asa partida, incapaz de alçar voos autênticos.

Assim o destino se revelou:

sonho e realidade engalfinhados,

mas sem fusão verdadeira.

E, então, a porta aberta.

O sol carioca alça-se sobre a calçada,

iluminando-lhe os ombros como testemunha da decisão.

Ela, sem bagagens aparentes,

leva apenas a certeza de que, dentro de si,

um universo desperta para o inédito.

Com passos cautelosos,

abandona a imagem de outrora,

entendendo que o segredo de existir

é reconhecer a transitoriedade de tudo.

Assim parte, como quem acorda de um sonho prolongado.

Em cada batida do peito, encontra a força

de saber que o abismo entre o que se foi e o que se será

não é maior do que a coragem de seguir.

E, no íntimo, entende que a maior forma de amar

é a de libertar-se do jugo de um afeto sem raiz,

convertendo dor em semente,

para que a flor do porvir — quem sabe —

resplenda num novo e verdadeiro horizonte.

sem raiz

Ele, que outrora depositara fé em azuis tão amenos,

Ele, no dia anterior, deixou de ser. Não havia mais qualquer resquício daquele que julgava conhecer, apenas um reflexo desafinado de um sonho comprimido em latas sem rótulo. Olhou para o inimigo imaginário e pediu perdão, antes de descobrir que a figura temível, na verdade, era o próprio rosto estampado na poeira de um tempo escoado. Deitou-se sobre um sopro de ventos vencidos, sentindo os minutos congelados entre as costelas, e percebeu que o passado não passava de um luxo pesado, herdado por uma mente ainda presa à cela da memória.

Foi na véspera que ele partiu. Reuniu as feridas numa mala antiga, como quem organiza obras sem valor para uma mostra que ninguém visitaria. Guardou na garagem o que sobrava do velho companheiro — aquele que chamava de “eu” — e vestiu um casaco de dentes, afiado o bastante para cortar a própria resistência. Seguiu rumo ao desconhecido. Pelos corredores internos, conversou com as saudades que ainda moravam nele. Explicou-lhes que já não havia susto capaz de ser poesia, que até o sopro da paixão se reduzira a um lamento inaudível.

As saudades choraram. Ele, não. O amor transformara-se em claridade invertida, iluminando só o vazio onde, antes, acreditava haver sentido. Foi preciso esfregar as costas do próprio umbigo, em ato grotesco, porém essencial, pois o ego é um altar que insiste em sacrificar o que poderíamos ter sido. Ao tentar correr por dois, ele entendeu, assinava sua derrota antes mesmo de chegar ao ponto de partida.

No dia seguinte, despertou descalço e faminto de descobertas. Finalmente, enxergou em si um amigo esquecido e se despediu dos temores com a ternura de quem se afasta de um amante antigo. Aboliu vontades ocas, viu a beleza cair de seu pedestal, descobrindo que ela jamais passara de um véu, enquanto a paz despontava como um solo neutro, onde as batalhas do querer se dissolviam em silêncio.

Então, voltou-se para as mentiras que o futuro teimava em soprar. Riu, porque sabia que a promessa do arco-íris termina onde começa: num baú sem tesouro, numa ilusão que nunca se tornaria verdadeira riqueza. E, por fim, banhou-se no presente — o instante nu que respira sem adornos, máscaras ou promessas.

Ele partiu de si próprio, disfarçando o adeus com um “sim” — um querer que o sustentara por tempo demais. Só então reconheceu que a vida, tal qual as histórias que cismam em não terminar, se fecha no momento em que desistimos de lutar contra o que somos. E, ao soltar as rédeas, ele por fim aprendeu a existir.

cela da memória.

Últimas Flores

Te amo de longe,

porque de perto tua beleza me desaba,

na palavra que não digo,

como vidro moído,

na saudade que balança sozinha uma árvore vazia.

feito animal meio perdido, meio fiel, com fome, sede e tesão.

como quem esqueceu o que o amor deveria ser,

que te cheira como a última droga na prateleira. como amante,

na calma e na explosão,

no instante em que o tempo para,

e no segundo em que ele corre feito um sorriso sem margens.

como um pássaro , sem moral, sem mistério, apenas asas e necessidade.

como quem não sabe onde guardar tanto fogo,

e por isso, te deixa escapar.

Tenho fome dos olhos que acendiam o mundo.

De longe, te amo. De longe, te guardo...

te invento.

...não nos deve nada

Quantos mistérios e quantos sinais picham os muros assustados da lucidez!!

Mas a melodia ordinária do razão arrasta de volta ao mesmo ponto de partida: ser imutável, incompleto e inevitável.

Desviar das instruções? Improvisar fora do ritmo?

Arrancar os adesivos do desassossego?

O desejo infiltra-se nas fissuras, como tinta que desafia a chuva ácida das ordens e do tempo, uma marca teimosa, uma cicatriz colorida que nunca seca.

Nas covas do pensamento, a covardia ergue fantasias de felicidades em concreto bruto.

Luzes de inseguranças piscam freneticamente, onde o cheiro do passado se mistura ao ar viciado do orgulho.

Cada detalhe do presente é um mosaico de sonhos suspensos, encruzilhadas onde nos encontramos e nos perdemos novamente, sem mapas, apenas a pulsação instintiva de espiritos rebeldes,

batidas que desafiam a ordem e clamam por transformação.

O desejo verdadeiro é uma equação impossível, a soma de todos os becos sem saída e pontes inacabadas.

É uma poesia estropiada, crua e inescapável, uma linguagem que apenas as inquietudes entendem.

Maior que qualquer ruptura, atravessa o físico, rasga o asfalto, encontra espaço nas entrelinhas do íntimo para seduzir a angústia. É o apetite de unir vidas, de transformar a distância em serpente e deixá-la levitar.

Mas a vida insiste em pintar linhas divisórias, enquanto a arte, em seu cio, geme por transgressão.

E mesmo assim, a coragem não precisa de espaço ou duração; a alma existe no vazio,

como um eclipse na solidão. Viver é apenas uma visão repentina, e a incerteza é a única forma de sermos reais. O infinito não nos deve nada, mas nós devemos todas insanidades ao amor.

fissuras

O que pulsa em mim não é carne, é uma estado de cores viajantes, uma corrente selvagem sem leito, uma deriva que não flui nem recua, mas se reconhece nas margens do silêncio, como um beijo preso nos dentes da eternidade.

Não está fuzilado no tempo, mas em um encanto que brota no fundo.

Não é vazio, mas de alguma matéria espessa do espírito,

como o eco de mil ecos de amores mordidos,

como o sopro de fantasmas que nunca existiram, mas ainda assim me respiram.

Eu vejo os devoradores do infinito, os trapezistas do impossível,os amantes do zero absoluto, mas não os sigo.

Eu quero as fissuras que o mundo esconde,

os pequenos abismos no asfalto, as cicatrizes do real que tremem quando tocadas pelo incerto. E o que sobra?

se alimentar do sonho ou da sombra, mas eu fico com a beleza que arde.

Um peso que não pesa, mas arranha o sentir de forma rara, uma fraqueza que fortalece e ressoa.

Não é exaustão, mas um mapa incompleto,

uma linha que não termina,uma espiral que se dobra sobre si mesma e me carrega na minha própria direção. Não é só o ser, mas o intervalo entre o partir e o desejo de estar, uma fome de algo que nunca teve nome, uma sede de alma que nunca foi líquida. O que me atravessa não é o tempo,

mas uma erosão. E eu existo assim:

como um grito trepado no vento,

como uma canção excitada que ignora o ritmo,

como uma lâmina que não corta,

mas ainda brilha.

suor e vaidade

O peso do mundo não cabe nas costas de um só homem, mas desce pelos becos da cidade, ralos entupidos de promessas mortas, trilhos de olhares onde não se chega mais na hora e o relógio continua rosnando os segundos.

O sorriso tortos de quem vende o tempo barato

e grita em silêncio no espelho rachado das manhãs.

Sonhos esmagados sob saltos altos de pressa e arrependimento, contratos assinados com a alma, mas escritos em tinta que não deixa paz.

Você, sábio de olhos cansados, abraça um enigma que não quer ser resolvido, segura com unhas sujas um pedaço de infância como quem guarda um fósforo molhado no meio da tempestade.

Renuncia. Não há bandeira na trincheira do passado.

Os momentos construídos com suor e vaidade

são apenas ruínas que o tempo corrói, porque o tempo é ácido, não é escultor.

Ele não molda mármore; ele dissolve carne, até os ossos serem pó que ninguém lembra.

Não tema o sol. Ele só faz o que foi feito pra fazer:

seca a lama das enchentes, frita pombas nas calçadas como se fossem sonhos vencidos, deixa as ruas ainda mais reais.

Há poesia nos limites.

Há grandeza em aceitar que somos feitos de restos –

restos de dias que não vivemos, de amores que não salvamos, de palavras que ficaram trancadas na garganta e agora são só ruído.

É aceitar que, no final, só haverá silêncio.

E é nesse silêncio que mora a verdade que arde e rasga: o mundo é sujo, mas a lama também brilha quando a luz certa a encontra.

E no meio desse caos humano, se escolhe a liberdade, não para mudar o mundo, mas para que o mundo não te mude por inteiro.

o vazio na linha de frente

À arte, essa vadia cruel que a gente não larga, Nem com nervos esgarçados,

não com mãos limpas.

O mundo rasga por dentro,

e a gente remenda com palavras tortas,

mal costuradas,

manchadas de sangue e cerveja.

Não há inteiros,

nem restos, nem pedaços,

nem lixo brilhante..

não é musa.

é briga, luta de rua,

mas, ao mesmo tempo,

é também a luz que atravessa as frestas.

só o vazio na linha de frente,

mas, no meio do caos,

a gente encontra beleza —

não porque ela é óbvia,

mas porque ela precisa existir.

A gente desce nos becos,

onde o amor arde

e faz barulho,

e, mesmo assim, encontra coragens fugitivas.

Perdoa a dor, a despedida:

a gente faz casa. é o barro,

o poema, o tijolo.

no meio dos escombros.

E, quando olha pra cima,

o que ela constrói é algo belo —

não perfeito, mas humano.

a música que ninguém ouve,

a estrela perdida que brilha pra sombra.

Mas quando a gente vê, quando percebe,

é um milagre cotidiano.

é o chão podre

Há uma música que ninguém consegue parar de ouvir.

É o antídoto pro nada,

o que faz o ar ter gosto.

Não é sobre quem quer tudo ou quem não quer nada.

É sobre olhar a vida nos olhos e rir,

porque, no fundo, ela nunca soube o que poderia ser.

Arte,

mesmo na sujeira,

você é linda pra caralho.

A gente segue,

sempre renascendo.

Até o último verso.

Até o último grilo.

E quando alguém perguntar o que a gente fez,

a gente vai berrar:

“Eu vivi, porra!

E olha só como isso ficou bonito.”

POUCO

Pinta meu coração pelas unhas, desejo insano,

Sabe que o controle nasce nas extremidades,

Onde o corpo toca o vazio, oceano

De garras cravadas em outras vontades.

Arranha o tempo como um disco riscado,

Memórias em loop, sem escapatória,

Se Instala como um cirurgião afiado,

Sem bisturi, só presença ilusória.

Não conhece limites, é o mestre e a sala,

Conduz a vida com segredos do além,

Rouba a cena, faz a plateia que cala

Esquecer-se de si, não lembrar mais de quem.

Manipulador de ritmos e de passos,

Quebra-nos de dentro pra fora, sem aviso,

Dança perigosa de apertados laços,

Onde o bailarino perde o juízo.

E que doce é perder-se em teu caminho,

Deixar-se levar por tua corrente,

Até a esperança foge do seu ninho,

Achando encontrar um agora permanente.

Traiçoeiro herdeiro do fogo ancestral,

Cospe na face da razão que te ama,

Transformas tudo em febre febril e mortal,

Um fogo que não aquece, só inflama.

Sapateei na face dura do “nunca”,

Descobri que a eternidade é ilusão,

Truque barato que a mente fecunda,

Mãos de Midas que trazem maldição.

Doença de vontades, amnésia solitária,

Esquecemos quem somos, o que buscamos,

Rei tirano de promessa falsitária,

Paraísos que jamais alcançamos.

Alquimista que não quer ouro nem prata,

Transmuta dor em prazer momentâneo,

Mergulhamos de cabeça na sonata,

Sem saber que o fim é um erro instantâneo.

Se enche nas fendas da alma partida,

Criando vícios de prazeres sentidos,

A cada toque, mais uma parte perdida,

E agradecemos por nos sentirmos vivos.

Desejo, ilusão definitiva, droga perfeita,

Química do prazer que nos arma e desarma,

Promete tudo, mas nada nos aceita,

No fim, é uma miragem que nunca se alcança.

Fera

E nós sentimos... sentimos o peso de cada segundo, de cada ausência, de cada vazio que se instala em nossas vidas como uma tempestade. Sentimos porque somos selvagens, porque fomos feitos para ser indomáveis.

ilusão

Lá fora, os ventos mudam, como se o próprio universo estivesse prestes a virar a página. As estrelas brilham com uma luz mais fraca, como se sussurrassem que o reino da ilusão está por um fio. Vaidade caminha sozinha pelos corredores do Coração, mas algo mudou em seus olhos. Ela se lembra do toque de Instinto, das palavras ditas na caverna.

Suas asas cortadas doem. Ela sente a ausência delas como se fosse uma cicatriz na alma, e por um momento, ela toca suas costas, sentindo a memória do que foi um dia. O público vê no reflexo de um espelho partido sua verdadeira face, não a de Vaidade, mas a de Liberdade tentando emergir.

Você pode ser o rei e pode mesmo ser até um eu. Pode até acorrentar todas as verdades nas costas da solidão. Mas, a vida nunca é a mesma, e muito menos a de quem vive nela. Um dia irá acabar todos os estoques dessa ilusão, mais cedo ou mais tarde, a vida mesmo irá se voltar contra você. E seu tombo só não será infinito porque suas escolhas não valem um segundo da verdade

Corrente fria

Oceano, profundo como os segredos que não ousa contar,

Imutável em suas marés,

Até que um dia, por acaso, viu as ondas,

Breves, insolentes, dançando como amantes livres,

Superfície que não conhece amarras,

Enquanto ele, submerso em profundidade,

Nunca tocou a liberdade que a leveza revela.

Ondas passageiras, indiferentes,

Nem notaram o olhar ardente do oceano,

Que, mudo, amava o efêmero.

Ele, criador de tudo, sem poder,

Nada pode segurar o que é fugaz,

Deslizando entre os dedos como espuma branca.

Buscou nas correntes, nos recifes partidos,

Afundou-se na própria verdade desfeita,

Espuma que foge, desfaz-se diante de si.

Oceano eterno, mas preso,

As ondas não se contêm nas marés do seu desejo,

Preso a um sentimento que não confessa,

Corrente fria que o consome em silêncio.

Amante silenciosa, corrente surda,

Ela ensina o que não pode ser falado.

Oceano navega em sua própria vastidão,

Amando sem segurar,

A grandeza do oceano reside em seu segredo,

Em deixar as ondas partir,

Em aceitar que a vida é um ciclo quebrado,

Que se arrebenta sozinha

Na maré da impermanência

a luz e o veneno

Eu sou um ritual antigo e eterno. Carrego comigo a chama de duas velas vivas, iluminando o pranto que escorre em forma de lágrimas. Estas lágrimas são minha oferenda, um sacrifício silencioso, onde a poesia se transforma na hóstia do encanto. Respiro como o vento que se enrosca no cabelo dos santos, suave e imperceptível, enquanto as costelas, que deveriam me proteger, se tornam escudos frágeis, guardando um coração que bate incessante, tentando ritmar o silêncio do mundo ao meu redor.

Na minha mente, tribos de pensamentos dançam, seus passos largos guiados pela fé cega, num compasso que balança a cintura da prece. Deus, invisível e sempre presente, balança junto, acompanhando esse ritmo. Dentro de mim, há uma basílica feita de ossos, onde a minha alma, dourada e preciosa, é adorada junto com os sonhos vivos que cultuo, sonhos que se abrem como asas na vastidão do pensar.

Eu bailo na sombra da calma, giro para desentortar os medos que insistem em me acompanhar. Em cada reza, tento elevar o desencanto, transformar o impossível em milagre, um milagre que me faça sorrir mesmo diante do desalento. Sou a própria providência, divino em minha simplicidade, como uma formiga erudita, pequena mas cheia de significado. O meu grito, quando ecoa, edifica o amor e a crença em um universo onde a dor deveria ser apenas um sussurro perdido na vastidão do que não se pode ver.

Mas aqui, onde eu deveria ser a cura, sou também a lâmina que rasga as veias do desejo. Em vez de curar, machuco. Espreito nas sombras, afiada, cortante. E mesmo assim, eu continuo, porque me disseram que este era o caminho, que este era o amor perfeito.

Muitos diriam que estou mentindo para mim mesma, que sou uma doença, uma ilusão criada pelo ‘Eu’. Mas na verdade, sou a luz e o veneno, a cicatriz e o canto. Fui levada a acreditar em promessas vazias, a persistir em um ideal que nunca existiu.

navalha fina

A cidade era um cadáver, com ossos de um copo de uísque, dando sentido ao vazio, enquanto um rio de fogo fluía em suas veias, tentando aquecer as marcas que dormiam em sua pele cansada.

O sentido de tudo, como um fantasma sem nome, perambulava em si,

Uma raiva sem dono entrou naquela casa de shows, um útero escuro, para ouvir uma voz,

Uma voz que ele conhecia de longe, mas que prometia redenção.

O cantor, uma figura misteriosa, arrancava notas da própria carne,

Cada acorde, um corte no tempo,

E o poeta, cético, descrente, sentiu o eco de algo vencido,

Como uma corda velha e empoeirada, vibrando cega,

Uma lembrança distante, uma dor preguiçosa despertando.

A música era uma navalha fina, aparando a barba do silêncio.

Os convidados agora eram sombras quietas,

Cada um, um espelho de suas próprias lágrimas.

Ele acendeu outro cigarro, o fogo uma pequena revolta contra a distância de si,

E pensou na música, na sua capacidade de moldar a noite,

De transformar o desespero em uma sinfonia amarga,

Deixando uma cicatriz invisível, um calor efêmero no peito.

A arte, pensou, era o bisturi do cantor, que abria uma fenda para a noite parir um sol boêmio, humano, raiando suas mágoas.

Ele não mudava o mundo, mas redesenhava formas de ver o passado,

Tornava o caos suportável, dava forma ao indizível.

E naquela noite fria, no Rio morto, ele encontrou mais uma pista do tesouro:

As cicatrizes sorriem.

E enquanto caminhava pelas ruas desertas, levando consigo o eco das notas,

Ele compreendeu que, na arte, o ser humano não curava suas feridas, mas tornava-se elas, até ser a própria cicatriz.

E, por um instante, a noite fria se tornou um pouco mais quente.

A Cláusula

nas entrelinhas da carne,

o acordo silencioso entre a Razão e o Ego.

São letras miúdas, escondidas nas dobras do tempo,

onde a ilusão se faz cláusula inquebrável.

A Razão, calculista, assina com mãos firmes,

pesando cada vírgula,

cada ponto final que sufoca a emoção.

E o Ego, vaidoso, sela o pacto,

protegendo-se com muralhas de orgulho,

evitando qualquer brecha para a dor.

Mas eu, prisioneiro dessa aliança,

mergulho em papéis que não compreendo,

tentando rasgar contratos invisíveis,

enquanto o tempo ri,

sentado no canto escuro da sala,

sabendo que sou refém

das horas que nunca foram minhas.

Quem dera quebrar o selo,

libertar o coração da lógica fria,

mas a pena é pesada,

e a liberdade é um sonho

que se dissolve na tinta que escorre

de um contrato que jamais quis assinar.

...A virada do ano é uma ilusão, uma tentativa infantil de domar o tempo.

“Vou amar mais,” mas o amor não é verbo, é substância que ninguém sabe criar.

amor líquido, não é rio, apenas um copo que cai da mesa enquanto se tenta brindar algo que nunca existiu.

Troca-se amigos, amores e sonhos como quem troca de absorvente.

O primeiro sangue, a primeira dor, e já procura-se um lençol limpo, uma pele que não carregue o cheiro do ontem.

São águas rasas.

Rimos da liberdade enquanto nos acorrentamos às notificações que piscam nas telas.

O desejo é um fluxo interminável, escorrendo sempre, evaporando antes de formar um mar.

A vida, essa cadela velha com dentes quebrados, morde mesmo assim.

Ela te pega pelos calcanhares enquanto você tenta dançar

uma coreografia inventada, com memórias queimadas no cinzeiro da mente.

Fugimos da constância porque ela pesa,

porque sustentar o outro é sustentar o espelho que ele carrega. Um toque, um beijo, uma mensagem:

tudo evapora na mesma velocidade em que foi criado.

Não há abraço que o contenha, apenas a sensação fantasma de algo que nunca foi inteiro.

Nada é sólido, e é essa impermanência que dá sentido.

Então brindemos, não ao futuro, mas à fragilidade.

brindemos às mãos que se soltam e aos pássaros no fio elétrico:

pousam por um instante e logo seguem,deixando o silêncio que sempre esteve lá. E há beleza nessa precariedade.

A transitoriedade nos lembra da impermanência de tudo.

Talvez seja na aceitação da falta, na trepada com a incerteza, que encontramos a vida.

O relógio não marca o tempo

O relógio não marca o tempo, apenas o dissolve em gotas suspensas de eternidade. Esse descompasso das horas – onde os sonhos se despedaçam em partículas de desejo – nos revela que o tempo é um ritmo sem batida, uma respiração que atravessa as sombras e nos arrasta para longe do porto seguro da razão.

O destino. nos cospe, sim, em becos sem saída, mas o faz com uma espécie de amor ardido, como se nos dissesse que o verdadeiro significado está no tropeço, no inesperado que ri da ordem e da previsibilidade.

Não há um destino, mas linhas de fuga, fluxos que escapam, que fogem de si mesmos, que nos levam a experimentar o caos como criação, o acaso como intensidade. Esse sopro de nada, que dança entre o tic e o tac, não é vazio; ele é a possibilidade do novo, o espaço onde germinam galáxias de sentido, mesmo que suas luzes já tenham morrido antes de nos alcançar. Nesse espaço, habitam os nossos medos, nossos desejos, as palavras não ditas e os ecos de todas as vidas que poderíamos ter sido.

Somos fios, sim, mas não simplesmente perdidos – somos vibrantes, interconectados com o desconhecido. As mãos que nos tecem não são cegas por falta de visão, mas por excesso de horizontes, porque veem através de todas as coisas, e além delas. Elas não tecem o destino, mas possibilidades infinitas, e o fazem em uma língua ancestral, aquela que sentimos sem entender, que nos chama ao abismo de nós mesmos e nos convida a dançar com a incerteza

Helena (7 anos)

Parabéns, minha cúmplice de tantos aprendizados. A minha maior regalia é poder me encontrar TODOS os dias ao seu lado.

Ter filho não é sobre executar uma fabricação de educação exata para instituir um ser que instruímos os nossos infidos valores de correção humana, ou, menos ainda, impender nossas perspectivas sociais de “ser bem-sucedido”.

Vejo a paternidade quando me adquiro no milagre de instruir aquilo que eu mesmo não compreendia. É se flagrar com o mistério natural da sabedoria que já alcançávamos antes do útero materno.

Para minha filha, espelho tudo de benevolente que NÃO SEI; baseado na mais rica das bravuras: o amor incondicional.

Quando Helena zanza, aprendo junto; quando acerta, partimos para a próxima dúvida da alma.

Educar um filho é sobre entalhar as rugas da própria existência.

7 anos atrás, minhas certezas escorreram pelo ralo do umbigo; removi Deus das nuvens da tolice e passei a estudar coisas que eu nunca pude bancar por mim: trocar minha própria fralda, eleger meu nome, interromper meu cordão umbilical, inteirar no curso de pré-natal pra acolher um ser raiando para vida…

Tanta coisa que até parece quase nada! Tanto tudo a todo instante que nem ressalvo a quantidade da minha presença antes da paternidade.

Ser pai não se trata apenas de “botar no mundo” e sair “Cagando regra” de “Não e Sim”, “Pode e Não Pode”…

A instrução mais básica é tentar fincar em um novo ser, coisas que, em nós mesmos, são de diário treino: evitar fazer “o MAU“ para si e para os outros! PONTO!

De resto, o universo tem um grande plano amoroso para todos que confiarem no amor sem medo.

O amor não é sobre esperteza, domínio, poder, fortuna e vitória.

O amor é mais sobre “amar baratas” do que matar o que te assusta.

O erro é apenas o ponto de partida de qualquer acerto.

Paternidade é a uma constante prática de ser um exemplo digno dessa benção de lançar uma vida nova nesse mundo complexo.

investigo todo dia uma tentativa de que minha filha sempre saiba que pode contar comigo para ser ELA MESMA.

A coisa que mais amo é amar.