Ao Pôr do Sou

De Caio Sóh

CENA – Se passa na minha “Rússia”. Um peito com céu frígido, terra abatida, o ar baixa a escória de tudo que não fui, respiro azarado, neva bastante em todo meu instinto, um povo cansado de freqüentar meus exageros, solidão em estado de sitio, um íntimo com idioma bruto, cenário antigo de uma casa distante, nada chega a alguma conclusão. A ação batalha sempre por uma pequena transformação, porem não existe atalho até a cidade dos meus sonhos, Moscou ficou para trás. Estou longe de onde as verdades acontecem para os outros. Rússia antes de qualquer revolução em meu ser. O avanço ainda é uma utopia para esse casal que habita meu desgosto.

Personagens

ALEXEI MEDVED - Um homem sem aguardar surpresas, por volta de seus quarenta e poucos anos. Traz nos traços uma escassa coragem, um personagem com face quieta e judiada como um retrato antigo amassado na gaveta; se move bruscamente apenas quando a poeira da frustração lhe instiga o desespero, ou uma tuberculose insiste em lhe fazer tossir seus trancafiados anseios . Prisioneiro de si mesmo, revende aos outros um universo interior indecifrável. “O leão por perceber que nunca dominaria a própria natureza, desistiu de reinar o resto da floresta”.

BRANKA VOLK Um soberbo doce parado na vitrine da bombonière durante muito tempo, daqueles que nem sabemos mais se é artificial. Esposa de Alexei, um pouco mais jovem que ele, mas nas rugas a mesma quantidade de coices do tempo. Fêmea sempre prestes a despir-se do cinto-de-fidelidade ao amor que acorrenta sua intuição de mulher selvagem. Cheia de vontades esquisitas, caminha muito solitária pelo jardim para que seus devaneios tomem um pouco de ar antes de voltar ao fundo daquele oceano obscuro, onde se abriga agarrada em sua covardia. “Trancada em uma caixinha de musica, escuta-se apenas o som do choro da bailarina voadora”.

MIKHAIL –Um andarilho de si, caminha intenso sem buscar direções contraria, freqüenta de olhos vendados seus becos, experimenta muitas frutas porem, jovem, mastiga pouco e engole rápido.

IVAN – Não o conheci.

ATO I

O URSO E A LOBA

(Alexei Medved em seu quarto a estudar sua tese na maquina de escrever, Branka Volk adentra e lhe serve um chá)

BRANKA –Já abriu a janela? O céu está de cara feia! Encará-lo chegou a me dar vertigem. Com certeza não quer nada de nós, Alexei! (Pausa, espaça a janela) Vigiei as nuvens, andam pouco, se trombam o tempo todo, parecem estar azaradas, ou somente cansadas, vai saber que tipo de charada tem uma nuvem com a outra! O que me chamou mais a atenção foi o entretom delas, lembram aquela barba escura abissal do seu contador! Engraçado, as nuvens mudaram meu humor. Nuvens negras amarguram o meu dia!

ALEXEI - Acha que despencará algo diferente da chuva?

BRANKA - Como o que?

ALEXEI - Pedras, nanquim, alfinetes, tamancos, pássaros mortos, algo que borre as coisas, ou fira um ou outro que marche desatendo na hora do temporal? Pela cor chateada do céu, acha que algo de ilícito, algum contra-ataque de Deus ou balburdia do Diabo pode vir a ser lançada em nós?

BRANKA - Nunca pensei nisso!

ALEXEI -Não te entendo, Branka! Hoje já falou das formigas a furtar o bolo de fubá, da lã do carneiro que está a amarelecer cada dia mais, telhas que não persistirão muito tempo ao bafo do vento, agora vem puxar assunto sobre a cor abatida das nuvens...fala de coisas que perdemos sempre como se isso na nossa vida fosse alguma novidade, notícia, um alerta...! Quando que o fubá esteve intacto, ou recolhemos lã alvejada aqui nesse sitio? Quando os eventos tristes da nossa rotina foram mais doídos que a secura dela própria? Te conheço, Branka? O que quer me propor?

BRANKA – Recebemos uma carta de Moscou! Tinha o selo da penitenciária. Não tive força para abrir. De certo nela caem noticias de Ivan: tenho medo que das linhas salte uma picada de víbora no meu coração de mãe? Porem também pode ser um carinho da justiça? O que achas, Alexei?

ALEXEI – (Interrompe sarcástico) Quer uma marreta para estilhaçar de vez o meu humor?

BRANKA – É o meu dever de esposa e de mãe te comunicar sobre a carta.

ALEXEI – Obrigado pelo zelo, porem prefiro, como já avisado antes, que qualquer noticia vinda daquele lobo faleça em teus ouvidos antes de chegar a mim.

BRANKA – Nunca esqueça que nós inventamos esse bicho para o mundo. Se ele se tornou peçonhento somos no mínimo cúmplice de qualquer crime que nosso filho cometa.

ALEXEI – Simples, rasgue a carta e a esfinge deixa de existir. Olhe para mim, estou tranqüilo, o meu Ivan faleceu em alguma guerra, ou em uma queda de cavalo, algo assim mais nobre. Nunca conheci um delinqüente, muito menos o geramos. Pronto, querida, olha como é simples construir bifurcações para grandes decepções. A carta da prisão foi largada aqui por um mensageiro analfabeto, um pombo-correio embebedado, essa é a versão original para mim, e te garanto que nem Deus é capaz de me persuadir do contrario.

(Ela deixa a carta na cama e volta para janela. Silencio. Alexei com um grande esforço levanta-se da cama, acende um cigarro e volta para maquina de escrever)

ALEXEI – Se adentra aqui no quarto, querida, única alcova da casa onde peço solidão para asilar minha confusão, se invade meu fim de tarde para trazer a algazarra do teu silencio prefiro que desande a falar, mesmo que asneiras, pelo menos não fico aqui a inventar espectros sobre o que diserta sua reclusa imaginação.

BRANKA – Pensava aqui rematada pela monotonia: a vida passa devagar demais justamente para quem não tem nada para fazer com ela. Deveria ser o contrario!

ALEXEI – Quer partir?

BRANKA – Tudo tem sua hora.

ALEXEI – Te sinto mais inquieta ultimamente.

BRANKA – São meus calos que incham no frio.

ALEXEI – O inverno parece ter aproximado também das suas atormentas.

BRANKA – Não sei, Alexei, a tempos meu ânimo não tem mais folhagens para variar nas estações. Em mim a transformação hiberna: aflições, júbilos, aspirações, repousam nessa minha caverna de fulana.

ALEXEI – Entendo. Sei exatamente a força do tapa em que sua mosca perdeu o rumo para o doce. Também sinto esse desacorçôo. O melhor que fazes é poupar perguntas que não dão mais tempo de serem respondidas. Lembre-se que estamos velhos antes de investigar qualquer coisa nova do viver, mais dá metade das questões se vão na hora.(Silêncio) Ah, querida, fiz uma descoberta curiosa hoje ao bisbilhotar o calendário. Domingo passado rematamos vinte e nove anos de casados. Pensei: se isso fosse um grande delito já estaríamos até soltos. Ou seja, no fundo estamos livres. Não sei o que muda, mas no subconsciente isso me suavizou um pouco!

BRANKA – Quer que eu saia do quarto para voltar a falar sozinho?

ALEXEI – Nunca perguntou isso? Sempre só saiu, Branka! Agora me deixou confuso!!!

BRANKA – Eu saio!

ALEXEI – Ué, fique! Veremos no que isso dá.

(Ele dá um pequeno riso, ela também. Silencio. Ele tosse feroz)

BRANKA -Sua tosse tem agravado!

(Ela o ajuda a deitar na cama.)

ALEXEI -Só tusso quando me olhas trancada assim! Se eu continuar a te avistar sempre atrás de seus desejos enferrujados na nossa convivência, essa tosse um dia revenderá a minha vida para morte! Mata-me aos poucos notar da sua vidraça, que a minha menina petrificou as vontades aqui no nosso mundo a muito tempo, e que hoje seca, dura consigo mesma, sem ter sido tudo que poderia, cai em um vazio sem fundo. Cadê a garotinha que estudou anos balé? Cadê a jovem que apaixonou-se por Léon Tolstói e viveria de dar aulas de literatura russa, a chutar a bunda dos cabritos, aquela que instigava as amigas a masturbar-se antes de casar. Te conheci colorida, púbere, cheia de aspirações, era até um pouco desvairada demais, mas tudo combinava na medida exata, todas suas manias, audácias, angustias, tudo que te cabia desenhava impecavelmente o que era você. Hoje, guarda em si um esboço mal feito, um desenho infantil com traços praticados pela poeira da sua partida de si mesma. Porque paramos de nos freqüentar?

BRANKA -Todo mundo que se ama por muito tempo tende a perder o tato para o novo e intimidade com o velho. Não é coisa sua, nem minha! Também tinha para si um universo inteiro para riscar. Estacionamos os anseios na mesma vaga, não existe culpa, e nem uma tristeza rebelde, nada pode ser tão doloroso quando os sentidos mais íntimos já se deseducaram de serem naturais. Felicidade aqui não tem a pretensão de ser contente nos exageros, pensa com o caráter prático, existe uma paz bem servida para todos os sentimentos. Angustia não tem apetite pelas nossas agonias, saudade não joga pedras na janela do passado...Quantas vezes queimei a mão no fogo a lenha? Chorei somente na primeira vez que vi a estranha cicatriz que passou a morar na minha mão até ali toda alva, uma feminilidade intacta tinha sido rasgada pela primeira vez; a menina que pintava as unhas, abusava dos cremes, perdeu o motivo para cuidar do imaculado, já está marcada para sempre. Pronto. E a partir daí nada se pode fazer. Ninguém estilhaça uma louça e a cola, apenas aprende a conviver com os restos, e o pedido de desculpa a si pela distração consigo. Hoje olhe para as minhas mãos, quantos sinais o fogo não deixou! Olha para o meu rosto, quantos receios o medo pregou na minha pele. Não há porque lacrimejar na segunda pancada se a marca da primeira já estragou minha face!

ALEXEI -Mesmo que seja raro, gosto de conversar com você, principalmente quando está falastrona.

BRANKA -Precisamos nos encorajar a conversarmos mais!

ALEXEI -Talvez precisemos ter coragem de escapar de vez por todas um do outro. Conversar abrirá muitas portas para nós, e de que adianta perder esse tempo se já sabemos que a paixão era somente hospedes malucos que ocupavam nossos quartos, aformoseavam nossa prisão, e eles já partiram a muito! O que adiantará cansar o verbo procurando algo ainda nosso, se os feixes de luz que saem das frestas que nos chamam para um novo começo juntos estarão mentindo?! Não existe esperança para caso como o nosso. Cheguei com você até aqui, mas sem mim. Qualquer coisa que você sinta por mim hoje é mentira, pois sentirá por algum vulto que chegou primeiro que eu! Eu fiquei para trás! Tenho no lugar de alma uma estatua do que fui.

BRANKA -As porteiras do sitio sempre estiveram escancaradas, porque nunca montou em um dos teus suntuosos cavalos e partiu?

ALEXEI - Nunca soube o que fazer comigo sem ti!

BRANKA - Mas se comigo levantou apenas um palácio de coisas nulas, o que teria pior para ver pelas travessas da inovação?

ALEXEI - Em primeiro lugar, não aprendi a te perder e temo muito isso. E se vou e de repente percebo que tua presença, atualmente invisível no meu peito, seja o amor de verdade acalmado, e assim seja a ordem honesta para todos, talvez a alameda do amor perfeito seja essa: o sentir aos poucos em banho-maria, temo que se eu pegar o trem e correr o trilho dos olhos do mundo, me pegue no flagra do vazio, e sua ausência desperte esse amor como uma anomalia, um monstro que me devore de saudade pedacinho por pedacinho. Temo que a solidão me cerre os olhos em um falso escuro, apague pessoas que me fariam maior, tranque em um quarto somente eu e meu umbigo onde eu me torne no isolamento um Deus medroso e surdo que se acomoda apenas no que sabe dizer e se permite escutar.

BRANKA – É, Alexei, a solidão é areia movediça para quem não sabe boiar na lama de si! É mesmo arriscado escrever toda página do seu tempo, chegar na outra margem de si sem o achego de um companheiro de viagem.

ALEXEI – Curioso, querida, falou dessa tua amizade com a solidão com o mesmo sorriso e intimidade que as hienas partilham a carniça. Conhece ela de onde se estamos juntos há tanto tempo fincados nesse sitio?

BRANKA –Conheço bem essa moça, Alexei! Solidão foi por muitas vezes parteira das dores que careciam desocupar meu ventre. Já me beliscou muito, arrancou-me os cabelos, porem por vários momentos foi minha concubina, me respondendo com ouvidos atentos, olhar ereto quando foi preciso ser entendida! Desde quando chegamos aqui, desde que comecei a ouvir tanto silencio, passei a papear sozinha, criei alguns lugares só meus onde aprendi a freqüentar minha solidão, algumas amigas imaginarias, criaturas malignas que me cobram a alma mesmo sem eu a ter vendido, até amores impossíveis que nem vim a conhecer, criei e espalhei por está casa uma população só minha e é disso que tenho vivido.

ALEXEI -Confesso que se eu soubesse que estava maluca a muito tempo juro que estaria com a flama ainda acesa por nós. Se eu soubesse que pode estar a me atraiçoar, mesmo que com homens imaginários, pelejaria para ser melhor para você. Tua sobriedade nunca me gerou curiosidade sobre o que poderia inventar para se safar da nossa vida chata. Nunca concebi que você poderia erguer um universo fantasioso sozinha, quem sabe teria te pedido para me apanhar do meu, ou mesmo idealizar historias de como poderia ter sido nossa biografia. Porque guardou esse mistério? Ao me confessar que é biruta passa a voltar a ser jovem para mim! Onde está essa andorinha que não conheço? Solte da gaiola tudo de si que é capaz de voar a algum céu que não seja esse escuro que vigias até furta-te o humor, quem sabe não deixo de ser pedregulho e saio ave a voar atrás dessa minha dona até então secreta.

BRANKA -Não existe andorinha! Isso que crio de mim são aves de papel, origamis de colibris mal feitos, molhados, frágeis, que logo se desfazem em minhas mãos. Minha passarinha não tem coração, muito menos sonho, para que libertá-la?! Tudo que aspirei para mim está enterrado em pedaços espalhados por todo esse sitio. Durante todos esses anos, em cada lugarzinho daqui, chorei um pouco de mim. Na figueira: larguei dos olhos todos meus pedidos infantis, matei o príncipe que me socorreria do meu mundinho sem fantasia, a dançarina voadora tombou de cabeça, as milhares de receitas de bolo de barro, a presença eterna dos meus pais, ali esqueci o rosto, os nomes das minhas bonecas de pano que tanto me escutaram, e mesmo em silencio entenderam tudo que eu precisava para ser livre... Sabe aquelas coisas que criança não sabe matar?Todas essas eu esquartejei debaixo daquela árvore enquanto você escrevia suas receitas médicas para salvar fulanos, sua esposa esquartejava fantasias que se ainda vivas me tornariam alguém pelo menos com alguma bagagem mais intensa. Hoje sou uma alma com a carne crua! Não quero mais nada das estrelas, nem um favor dos santos, nenhum móvel novo para casa, ou vestido rendado para festas de fim de ano. Para mim o tempo nem se dividi em anos, nem os compromissos em horas, peguei tudo, juntei em um relógio só meu em que a vida passa lentamente e chata, onde os minutos não tem mais nada a oferecer. Ali naquela cama deixei cair o medo da morte, nem isso tenho mais. Foram varias as vezes que engoli esses tantos comprimidos que trazes da cidade, mas até a morte fez pouco caso para minha vida, como se tivesse pessoa melhor para arrastar. No lago onde pesca já me banhei nua por muitas vezes, em frente aos bichos, aos funcionários, até as jovens empregadas esperando que alguém me desperte a vontade de fazer alguma loucura, trepar na baia dos cavalos com algum desses mulatos transpirados, ou experimentar a seiva da mulher com uma dessa juvenis pardas, lindas...mas nada tirou minha preguiça de existir do lugar. Só me encontro com o desejo no impossível. A única vontade que me tira do serio é paquerar Deus!

ALEXEI - Sei exatamente do que fala. (Ele levanta-se e bate na própria roupa) Vê a minha elegância, escondo atrás desse tecidos um sujeito atrofiado! Desculpa a sinceridade, se é que guarda alguma admiração por esse corvo, sinto decepcioná-la, sou fraco, penso coisas pequenas, tenho apenas idéias estúpidas de como mexer menos com as minhas verdades intimas, me assusto com qualquer vontade que se mova dentro de mim. Apesar de no peito governar uma enorme cidade habitada por um povoado justo, que merece respeito, meu reinado é apagado, nenhum traço do que sou confia em mim.

BRANKA - Por incrível que pareça, querido, agora me lembrou aquele primeiro homem que foste para mim. Delicado, honesto... Me arrebatei não pela sua audácia e sim pelo seu alento, pela jovem alma de vidro que desfilava sempre que te via, límpida e capaz de se quebrar pela verdade que te cabe. Nesses últimos minutos me raptou de volta, devia sempre espaçar as cortinas da sua covardia para mim. Ficou majestoso vestido de frágil. Prefiro ter meu amor regido por um rei fraco porem que me conte seus fracassados planos olhando nos olhos, que por uma alteza poderosa que me mostra a sua força somente de trás dos muros do palácio.

ALEXEI – Quando jovem me entreguei em tuas mãos com a graça de porcelana por pura inconseqüência. A juventude nos faz heróis estúpidos, Branka, enquanto achamos que estamos a caminho de algum feito histórico, ou a socorrer algum futuro mais belo, estamos apenas sendo imprudentes com todo o resto do que seremos depois daquela farra da bravura. A juventude age embriagada por desejos extravagantes, planos imaturos, certezas românticas, na prática os fatos são muito mais sóbrios. É fácil subestimar o perigo do amanhã quando a água ainda está pela canela, mas a vida certa hora não dá mais pé. É preciso bater de verdade as pernas milhares de vezes por dia para sobreviver a travessia. As responsabilidades chegam e junto delas o cansaço de salvar algo que não seja a própria pele. Me tornei um chato justamente por perder esse chão de devaneios que a juventude assentou para eu caminhar alienado. O tempo puxa o tapete, aquele jovem cheio de coragens de plástico passa agora o resto da vida em uma queda livre no buraco negro das frustrações. Deveriam espalhar placas pelas cidades avisando os ainda moços para não se exaltarem, perderem a pressa desde cedo, não existe um lugar a se chegar, rasgarem os mapas, não existe um tesouro escondido no futuro, o mundo não é um segredo a desvendar, é preciso apenas perder o entusiasmo e se adaptar a simplicidade das coisas. Só na infância as fábulas são reais, dali para frente a felicidade suprema nada mais é que uma alucinação.

BRANKA – Alexei, vida piorou ou nós que pioramos?

ALEXEI - Acho que pioramos a vida e ela passou a nos piorar.

BRANKA - Teu pessimismo me constrói zonza. Dói, testemunhar meu único companheiro diariamente quieto e infeliz.

ALEXEI – Não vejo assim! Você acha então que uma pedra é triste? (Silencio) Eu também não sou!

BRANKA –Talvez de tempo! Não estamos tão acabados! (Com um pouco de entusiasmo) E se de repente tivéssemos uma grande idéia? Algo que enlouquece o mundo?

ALEXEI - Gosto, porem, antes disso poderíamos ter uma única imaginação de como nos enlouquecer primeiro. Somos completamente sóbrios, querida, poderíamos enriquecer ainda mais o mundo de engano, e a nós mesmo! Enlouquecer de verdade é um dom somente dos alienados e dos gênios. Mesmo assim, acho nobre tua vontade de que algo derrube o pouco caso por tudo. Hoje tem me entregado pertences teus que nunca soube que guardava. Me esboça algo perto de alegria por te ter aqui.

(Crise de tosse, ela lhe entrega um lenço e o olha apreensiva)

BRANKA – Quando tosse o nó do meu peito abraça agudo uma atormenta insuportável. Temo sua morte! Será que eu ainda te amo ou é só um temor infantil de ficar desamparada nessa casa?

ALEXEI – Gostaria de crer que é apenas um medo seu de ficar só, não pretendo morrer com a culpa de te deixar alguma saudade. Besteira tua a essa altura da minha doença cultivar algum apego por mim. O ideal seria desemaranhar todo o laço que temos para que siga, após minha partida, sem esse nosso passado enlatado!

BRANKA – Tem razão. (Silêncio. Ela de saída pára na porta) Já que por algum motivo inesperado quebramos o silencio e desandamos a falar das nossos crimes, seria um abuso perguntar o que sente por mim? Afinal não comenta sobre isso a mais de duas décadas.

(Alexei levanta, acende um cigarro, serve-se de Vodka)

ALEXEI –Não comento porque a muito passou a ser uma questão simples. A principio: te amo, Branka, como nunca amei alguém! Porem nunca adorei mesmo outra rainha, então, não sei nada sobre outro “te amo”. O amor para mim só teve sua face, e mesmo que esta não me arrebate mais, mesmo que envelhecido, ainda és a mesma matriz do único afeto que tive. Te amo como uma raiz ama a terra, me alimento da tua presença, porem sem sair do lugar, sem correr riscos. No pequeno conto que completei os folhetos dessa minha passagem, narra que meu personagem em seu intimo pescou uma única carpa, injusto reclamar, apesar da chateação de viver do mesmo gosto, afinal esse peixe me nutriu fielmente até aqui.

BRANKA – Não sei se é aferro de mulher, mas as vezes engordo a esperança em nós dois.

ALEXEI – É sim coisa de fêmea. (Alexei para na frente do espelho do armário) Venha até aqui, querida?(Branka vai até Alexei, os dois olham-se pelo reflexo) Já viu o demônio?

BRANKA - Não!

ALEXEI - Escutei por varias vezes o trote dele pelas tabuas. Até que o encontrei me olhando nos olhos, diante desse espelho, mesmos traços, barba vultosa como a minha, tudo se parecia entre nós, até ali tudo bem, o que me assustou foi ver que o demônio era a tristeza flagrada no meu olhar.

BRANKA – Entendo, Alexei! Nosso desgosto também me assombrou! Quantas noites estive deitada ao seu lado e temi sua presença, assustava-me a possibilidade de que você acordasse e perguntasse se e eu estava bem, enquanto eu segurava o choro por pena da mulher miserável que me tornei. Quantas vezes me vi no inferno ao ter que responder as suas perguntas feitas só por educação, enquanto dentro de mim o ciclone de decepções me atirava de lá para cá.

ALEXEI – Veja, Branka, não temos perdão! Definitivamente entregamos a nossa vida de bandeja um ao outro e cuidaste da minha de forma tão desatenciosa quanto cuidei da tua. Nunca impulsionamos um ao outro! Quantas vezes não pensei em entrar no barco de pesca e correr todo o rio sem pressa para voltar, faltou tua confiança. Quantas vezes você pensou em fazer o tal curso de corte e costura em Moscou, eu sempre fiz vista grossa. Somos dois matadores e ao mesmo tempo cúmplices do nosso próprio trucidamento.

BRANKA -Já pensei nisso! Será que estamos mortos? (Anda pelo quarto e observa os detalhes, pega uma antiga fotografia do casal) Já prestou atenção que há muito não temos retratos novos, De lá pra cá só perdemos força no sorriso, recebemos pouquíssimas pessoas, nem o carteiro nos visita, o valor que recebes do estado pelas teses da cólera ainda são os mesmo! Vivemos há tempos da mesma quantidade de coisas, nada nos falta, nada nos sobra, não emprestamos, nem vendemos, nunca fomos cobrado, nunca devemos, os nomes e papos que discorremos são todas de pessoas antigas que nem sabemos se ainda estão vivas. Será que uma dessas tantas árvores despencou sob o teto enquanto jantávamos silenciosamente, ou a neve cobriu as portas, a lareira cuspiu uma brasa no tapete, o fogo se alastrou e distraídos esquecemos de fugir das chamas, ou simplesmente tivemos preguiça de levantar e esquivar da morte! Será que nossa vida era tão anã que a deixamos cair pelo caminho e alguém distraído nos pisoteou e nem percebemos. Tenho a sensata impressão de que estamos mortos.

ALEXEI - Desaprendemos, querida, a praticar a regra mais infantil da vida: se soltar no viver. Tombar por aí, erguer-se por aqui, entrar em lugares soturnos e correr riscos, olhar para rostos medonhos e estranhar, atravessar a rua sem atenção, quase perder tudo, lembrar-se da carne e do osso, correr com o canino pelo jardim, não sabemos nem falar mal das pessoas, nada nos intriga, não há diferença entre mim e o terno dentro do armário.

(Ela abre o armário, escolhe um terno, um sapato e coloca em cima da cama)

BRANKA -Então erga a bunda do assento e leve suas roupas para apreciar o mundo!

ALEXEI - Não de esse desgosto a um linho de tão boa qualidade. Não sabemos o valor do homem que o delineou, as tantas historias que o alfaiate deve ter vivido enquanto frutava docemente cada ponto , com toda certeza são muito mais preciosas que as minhas. Não seja árdua com peças tão finas da vida, por trás desse terno moram contos de verdade que não merecem ser rabiscados por um passeio fúnebre que é a minha existência. (Ele abre o armário dela, pega um formoso vestido, um bom salto e lhe entrega) Gaste por nós dois essas solas. Pode arrastar o vestido para dançar, encostar o fino tecido do desejo pelos bailes, em peitos mais possantes que o meu. A tuberculose me diminui cada dia mais, e esses vestidos luminosos em pouco tempo já não lhe cairão bem, mostre suas cores a outros varões. Cortes como esses foram feitos para serem vistos e tirados aos poucos pelas mãos excitadas de um próximo. (Ele pega os perfumes da penteadeira) Olha quando mel aqui para ser bajulado na pele da delicadeza. Sei como fica bem qualquer um desses aromas baralhados com o calor que só o teu pescoço tem. Nós paramos de sentir a fragrância de mortal, porem existem muitas narinas atraentes espalhados por corpos que se arrepiarão ao sentir-te tão bem banhada. Merece, querida, mesmo que tarde ser uma fruta bem chupada.

(Ela estica o vestido na cama delicadamente, em seguida deita o terno dele em cima do vestido)

BRANKA - Como seria poderoso se ainda soubéssemos amar! (Respira fundo como se sentisse aqueles corpos) As roupas voejariam de nós, melaríamos como jovens o lençol com a poupa do deleite, o gosto do teu néctar empregaria minha felicidade... Sinto saudade de gozar!

ALEXEI – Esqueça esses moços delírios, Branka! Esse terno abraça de forma mais alinhada o teu vestido sem nós dois dentro desse carinho, entende?!

BRANKA - É, ultrapassamos a tristeza, essa oferenda que fizemos ao desespero de não se ter nem por um segundo até merece a criação de um título mais dolorido! Nem saberia agora nomear esse sentimento que emburra meu coração.

ALEXEI - Somos só o nada bem vestidos e falastrões. Ninguém tem percebido que enquanto os ratos andam os homens desabam. (Ele olha calmamente pela janela) Desconfio que não só para nós: O fiasco caiu na cabeça de todos, querida! De repente essa nossa escapada seja um golpe pensado da sorte que nos livrou de conhecer sujeitos com o caráter de lúcifer, porcos que estudaram a se comunicar melhor que anjos. Sinto diante de tanta ilusão que uma doença nova se espalha cada vez mais veloz, enfermidade sem cura, uma cólera mais profunda já carimbada na alma, a maldade sim é algo mais triste que o vazio. Talvez devêssemos mandar flores de agradecimento para essa monotonia que somos. Estamos salvos. (Fecha a janela) Imagina ser mal tratado todos os dias pelo homem que vende o pão, logo em seguida escutar asneiras calado de um chefe estúpido, incapaz, bronco, que você é obrigado a reverenciar, sentar-se em uma cadeira sem poder içar, dar uma volta pela praça todas as vezes que a vontade lhe exigir. Temos sorte, somos livres! Mesmo com a alma construída de tijolos miseráveis somos completamente senhores do casebre que nos veste. Nos tratar bem ou mal, fugir ou ficar, chutar ou acalentar são opções só nossas. Acho que por fim até que estamos bem, querida! (Bebe um gole do chá) Se aqui os chás não esfriassem aí então estaríamos asilados no paraíso.

(Apanha a xícara da mão dele)

BRANKA --Esquento outro para ti.

ALEXEI - Faria mais uma vez isso por mim?

BRANKA -Durante toda sua vida, querido, serei eu a companheira que aquecerá teu chá quantas vezes for preciso.

(Ela desce para cozinha. Vemos em cena dois focos, ele sentado vestindo o terno e penteando o cabelo em frente ao espelho, ela preparando um chá para ele com todo cuidado do mundo. Pouco depois ela volta com uma nova xícara. Ela entra lhe serve o chá, ele nem a olha, ela senta na penteadeira e se pinta. Os dois conversam sem se olharem.)

ALEXEI -Reparei que voltou!

BRANKA - Vestiu o terno!

ALEXEI - Fico feliz em saber que volta a pintar-se.

BRANKA - Apesar de tentar me convencer que não, sempre soube que esse terno lhe vestiria primoroso.

ALEXEI - Tem razão, acho que eu e ele podemos ser bons amigos. O gosto do chá é o mesmo, mas o jeito dele está mais agradável.

BRANKA - O chá é o mesmo! Acho que dar goles atenciosos desvendam alguns gostos esquecidos!

(Alexei zonzo passa a respira fundo)

ALEXEI - Acho que estamos juntos e felizes em algum outro lugar mais fácil que esse mundo que nos cabe.

BRANKA -Gente cansada como a gente só pode mesmo achar! Somente os crescidos não acham e sim desvendam coisas nossas que deixamos jogadas por aí!

(Alexei apóia-se na parede)

BRANKA –Está tudo bem, Alexei!

ALEXEI – Estou azoinado! Não agüento mais revezar a visão entre a imagem e o blackout.

(Branka vai até Alexei levanta sua cabeça)

BRANKA – Dr. Ilitch pediu-me para erguer sua cabeça quando estiver para desmaiar.

ALEXEI – O que perderei se apagar por alguns minutos, se a minha labareda tem a mesma timidez na clareira que no sombrio?

(Alexei levanta-se, quase sem sentidos, de olhos fechados e tenta caminhar pelo quarto)

BRANKA – Não vejo necessidade disso, querido! Deite!

(Alexei gira lentamente e abre um sorriso)

ALEXEI – Essa sensação de que não me tenho... Não sou patrão nem da minha própria saúde!

(Alexei canta tremulo, e em seguida cai na cama de olhos fechados. Branka célere senta-se ao seu lado)

BRANKA – Alexei?

ALEXEI – Estou aqui, companheira!

BRANKA – Assim me assusta!

ALEXEI – Também estou assustado.

BRANKA – Então pare de satirizar sua sanidade!

ALEXEI – Não precisamos mais nos cegar para os fatos tristes! Não nós dois que repartimos em fatias iguais durante dezenove anos o pouco que somos. Sabemos que estou nas paginas derradeiras da minha estória...

BRANKA – Egoísmo seu falar da sua morte na minha presença com tão pouco caso. Não esqueça que sobrarei a pesar sozinha todas essas nossas tralhas.

(Alexei respira fundo e arranja força para sentar-se na cama mais lúcido)

ALEXEIEstá certa, Branka! Desculpa esse meu turismo pelo delírio. Te confesso que não passa de uma escapada por temer que depois do fim eu volte pior do que vim. Prometo me ajuizar ou no mínimo ser discreto e freqüentar as demências mais quieto.

BRANKA – Alexei, apesar de a nossa intimidade ter virado só fóssil do que um dia foram nossos dois corpos entregues por inteiros, e hoje circularmos como forasteiros nesse mesmo deserto, atrevo-me a dizer que qualquer cancro que cresça em ti me fere mais que todas as pontas de lanças que já pisei. Somos parceiros, assistimos grudado o comboio dos sonhadores passar, mesmo que não tenhamos pegado carona nessa carreata dos venturosos, nos abraçamos fortemente dentro do furacão. E isso não é pouco, querido!

ALEXEI – Que lealdade a sua, encontra boas réplicas para termos chegado de mãos dadas a esse purgatório.

BRANKA – Não, não fale assim mais! Não quero mais ver nossa união como entretimento para os demônios. Poxa, quem disse que não fui feliz? Eu mesma? Não sei, agora tenho duvida! Comparado ao o que fui infeliz? Seu olhar magoado que me influencia demais. Você empacou e eu acreditei, só isso! Nunca inventei um fim triste para minhas estrelas cadentes. Por que, meu homem, insiste em ser tão mendigo?

ALEXEI – Ah, Branka! O que posso te dizer que não te naufrague mais...?Adormeci minhas ambições, passei a ser pacato por não me adaptar ao bate-papo aparatoso da roda de amigos, não aprecio nem as botas que eles vestem, nem os boatos que são comprados nos brechós da calúnia e revendidos dentro de grandes festanças, teatros, universidades, e até mesmo nos botequins. Ideais velhos, entram como chapeletas rendadas por idéias somente antigas, e o pior querida, é que estes formado ultrapassado de ser, tem ficado justos nas cabeças de gente nova. Não me permito ser cúmplice dessa sabotagem, esses loucos que arquitetam nossos princípios deveriam estar na masmorra. O reconhecimento que aspiro é de dentro para dentro. O status não seduz meu bem estar. Para vencer é preciso derrotar, prefiro crescer que é preciso apenas regar, mesmo que brotem dos meus miúdos grãos acanhadas descobertas, elas sempre me parecem um grande encontro. Há cada vez mais frutas com luxuosas cascas, porem na poupa o mesmo desgosto. Eu optei não morder esse veneno da acomodação em sucesso de aparências. Cada um serve ao próximo o que o próprio ego precisa embolsar. Nunca fui espirituoso, Branka, nem tive o menor jeito para palhaço, não há motivos para que eu seja mais um mambembe dessa trupe que percorre os anéis da sociedade a procura de um reconhecimento fantasioso. Sabe o que é andar, ouvir, observar e nem por um segundo ter fé que o que é me dado pelos outros tem um chuvisco de realidade. Não acredito nessa gangue de indivíduos . As pessoas tão com a feia mania de serem as outras. Me exílio nessa ilha de carne e osso que habito adoentado, porem não existe escambo, nem falsidade entre os meus “eus”. Nunca ousaria passar atrás de um dos meus cavalos, mesmo os apreciando mais que qualquer sujeito, não confio, o coice sempre está engatilhado nas patas dos bichos e no caráter dos homens. Assim fomos feitos, perigosos! Confesso que resignei diante de tudo e de todos, e você, apesar de ter vindo como um trocado da minha comodidade é a única moeda valiosa que a vida me deu. Sou miseravelmente sozinho aos olhos dos outro mas não te vejo como esmola, afinal topou encarar comigo esse vão que preencho a cada dia, tu és a minha única fortuna. Branka, nem sei o quanto sou fiel a sua dignidade de companheira nos momentos simples e principalmente cabeludos. (Vira-se de costas) Confesso que um choro espanca a grade que ergui nos olhos pedindo pelo amor de Deus para se lançarem em meu rosto por gratidão a ti, pena de mim e de tantos outros! Preciso de um banho frio antes que essa geleira que congelei minha compaixão derreta e vaze como avalanche dos meus olhos todo meu rebelde povoado.

BRANKA -Não me sonegue o seu choro, o rosto é só uma mascara descontrolada que move a face a cada cochicho desleixado do peito, não a vida nele. Chore, desespero é uma imaturidade honesta. Não saber para onde ir com os cálices ou mesmo se quer continuar a ser eles, é uma tolice justa, pois nesses novos tempos os caminhos também não tem sido nada confiáveis. A esperança parece ter vazado da taça dos que ainda a erguem. A sensatez despistou-se da humanidade. Estamos todos presos no tabuleiro, somos agora apenas peças na partida de xadrez da loucura contra ela mesma. Já não existe adversário para toda essa ilusão. Ao cantar do primeiro galo, a toda alvorada já acordarmos um contra o outro bem antes de pisarmos nos calos. Chore pela porta da frente, se possível como criança, não como um marmanjo medroso a esconder o desgosto que só precisa escorregar de ti. Deixa partir esse sujeito cancelado que te amarra, Alexei! Sentir é a única coisa que faz sentido!

ALEXEI –Sim, meu bem, mas se eu não choro bem, não durmo bem, não tenho coragem de gritar o nó, amo sem nenhuma meiguice, rio só da minha ruína, aceito as pessoas na minha vida só por educação, não sou nada respeitável em nenhum instante na vida de ninguém, não deixo saudade, nem mesmo a conheço, não rosno, nem mordo, não esvazio, nem encho o saco, sou uma gangue de nãos vivendo mal, sobrevivendo sem instinto! O que exatamente posso estar fazendo aqui? Esse é o meu caos, ser comentarista do meu próprio desencanto?

BRANKA – Você só está esquivando desse inferno que é conviver sempre entre códigos sociais, amizades implícitas, amores voláteis, bandeiras que evaporam a cada negócio. O caos sempre irá existir para quem aceita dar ouvidos ao próprio grito. Admiro o luxo do teu lixo. Ninguém pára e conversa com a própria podridão. Quem disse que enfeitar nossos defeitos não é algo mais honroso que expor na vitrine dos nossos interesses apenas as virtudes? Você é triste sim, Alexei, alguém empacado no “tanto faz”, porem teu fogo tem a luz da sua essência e como uma pequena brasa inquieta pergunta sempre ao vulcão da sua existência o quer da sua fervente pequeneza.

ALEXEI –Façamos o seguinte, Branka! Solta teus cães que lhes sirvo esse meu caos. Até onde nosso desespero sabe sair da toca e nos devorar no mesmo gongo? Assim seria mais justo, seriamos mastigados juntos, acabaríamos confundidos um no outro, parte do mesmo bolo de nossas sinas, dois companheiro iludidos no mesmo labirinto; assim como fizemos com nosso dia-a-dia.O tempo sugou nossas inovações em um gole só, porem somos dores completamente distintas. Será que resta algo entre nós que nos improvise chorar pelo mesmo motivo, que nos uma na ruína? Um simples baque para que levantemos como antes: juntos! Assim como em nossa mocidade; quando eu saía irrequieto para o mestrado no ambulatório, e a vontade de volver para seus braços chegava a me baralhar o pensamento, deixava cair a concentração em plena autopsia, tropeçava em quase todo degrau, tanto era a distração, tanto era o desejo de recuar logo para nosso prato do dia.(Sorri) Por ti, Branka! Cada atração, cada telha do teto deste sitio foi colocada como uma leve manta para nosso amor serenar agasalhado! Passava nos mostruários, via vestidos custosos, e quanto mais puxado o valor mais eu te queria dentro dele, queria ter ouro só para poder te banhar de peças com teu valor de esposa, adornar o afeto com toda prova do meu apego, todo o meu suor era o meu melhor buque de rosas para você! E eu sabia que estava aqui na expectativa da minha volta...

BRANKA – (Também sorri) Eu não só escutava já de longe a sua chegada pelo boato dos cascos dos cavalos como também pressentia daqui o primoroso momento que no hospital tomava altivo o seu sobretudo dos braços da estaqueira e o vestia como asas aprontando-se para o regresso ao nosso ninho.

(Alexei segura a mão de Branka, os dois olham-se estranhando aquele toque mas permitindo-se)

ALEXEI – Eu bolava tudo, querida! Via você a me aguardar no jardim como fina flor até a boca da noite, a vigiar nossas árvores: oliveiras, macieiras, pereiras, castanheiras, cerejeiras, para que nossas frutas nunca amargassem a sobremesa da nossa rotina ainda bem-aventurada, intacta...

(Branka passa ponta dos dedos na palma de Alexei)

BRANKA – Almejava poder ler a palma nua da sua mão! Nós que deixamos o viver sempre um passo atrás do destino, ver em tuas marcar o que elas guardavam para ti que eu não pude te dar.

ALEXEI – Para que interpretar a obra da minha palma toda borrada, com mais cobiça que desvendar a ilha inteira que adota meus olhos? Se existe algum enigma a ser publicado este não mora nos rascunhos de improviso que em minhas mãos foram abandonados por um destino desleixado; o mistério habita os becos do olhar, eles sim falam dos costumes, poses, maneiras do meu espírito. Neles sim tenho esquinas sombrias, uma fragilidade obscena, esse vitral me entrega mais, Branka! No olhar notará meu céu, os badulaques que enfeitam o meu esquecimento, testemunhará minha noite e poderá então contar as estrelas que delineiam minha constelação. Só você pode me narrar o tamanho da luz que ilumina a orbe da minha alma. Pense que infeliz, nunca me olhei nos olhos distraído! Faça isso por mim?! Me assista e descreva o universo sou?!

(Branka olha em seus olhos)

BRANKA – Me convida para um passeio desarmada pelo seu intimo até então nublado... E se for perigoso? Nem sabe que bichos te habitam? Será que não é tarde demais para esse tipo de aposta?

(Alexei senta-se com Branka e olha profundamente em seus olhos)

ALEXEI – Pinte esse retrato, só te peço mais isso!

(Branka então tenta desvendar algo após um tempo de silêncio)

BRANKA – A principio uma avenida completamente vazia. Cinza!

ALEXEI – E o céu?

BRANKA – Parece teu cinzeiro na madrugada.

ALEXEI – Ninguém passa?

BRANKA – Vejo alguém lá no fundo a atravessar a ultima avenida do teu horizonte. Me parece um bastardo!

ALEXEI – Como sabe que é um bastardo?

BRANKA – Atravessa a rua a ziguezaguear igualzinho você quando retornava mentindo para mim sobre as noites de jogo.

ALEXEI – Deve ser apenas a minha culpa que hoje circula por aí sem amigos!

BRANKA – Ou sua cara de pau concentrada pelo caminho de volta para casa a bolar desculpas mirabolantes.

ALEXEI - Mais alguém?

BRANKA – Fique quieto, Alexei, me deixe escutar somente o que vem de lá. (Silêncio) Ando, vejo um casarão meio torto como desenho de criança, talvez um sonho mal arquitetado! Assusta-me, parece que está para desabar a qualquer mugido. Engraçado, o jardim me lembra teu falecido irmão!

ALEXIEI – Vê Iákov?

(Branka vai aumentando aos poucos a velocidade em que descreve até no final quase atropelar as palavras de tão rápido que narra)

BRANKA – Não o vejo, mas o pomar está tão largado, mal cuidado, me lembram os volumosos e torcidos pelos do rosto de Iákov! Talvez tenha dele uma saudade pouco aparada. Devia, Alexei, visitar o pátio de suas memória, a infância de vocês, mesmo que doa cutucar a perda dele, não tem porque deixar enferrujar lembranças tão boas. Sons de gralhas grasnando vindos de dentro da casa... Vou entrar. Pensei em limpar os pés porem de tanto barro pelo chão e pegadas imundas de todos os tamanhos não me parece necessário esse cuidado contigo. As gralhas pararam, parece que grasnavam por carência de visita. Paredes avelhantadas, prontas para cair, fracas como seu olhar quando me pede perdão; as tabuas do piso roncam a cada passo iguaizinhos o estrondo que fazes nas noites que desfalece exausto por não chegar nunca a conclusões sobre a cólera.

Vejo Ivan, nosso único e ultimo filho, agora sei por que há anos não o escutamos, está impenetrável no dormitório dos fundos do teu olhar, em uma cela, preso justamente no aposento mais distante dos teus pensamentos, para que você não passe perto, cruze, atravesse, lide, lembre o menos possível desse desastre que és como pai. Ivan tenta dizer algo, mas não há voz nesse urro, ou talvez, Alexei, suas paredes nunca lhe ofereceram ouvidos. Ele não me parece orgulhoso, nem tanto pede ajuda, parece mais querer descrever um susto, avisar de algo monstruoso que esbarrou dentro de ti. Sei que está curioso, Alexei, mas não consigo te dizer com certeza se parece gostar de ti, ainda mais nessa situação, atado em teus fiascos e preconceitos. (Por fim Alexei está chorando como criança) Enfim, me deixe cuidar de você, meu marido! Ajudar-te a recolher seus desastre e colar com mais cuidado a parte legítima que resta ainda da sua feição! Vamos tomar um banho juntos? (Ele chora, ela delicadamente tira sua roupa) Vai ser curioso, me permita lavar teus pés para que peregrine brando novamente, espanar o pó de seu ombro e deixar-te apenas as autênticas maneiras, limpar de sua boca o batom tenebroso que borra teu sorriso, arrancar a casca de crime que pesa em suas costas; Confia em mim! Venha! (Ele fica nu. Branka o encaminha para trás de um biombo, assistimos apenas pela penumbra este momento. Ela lava suas costas e ele ainda de cabeça baixa como se aquele choro fosse um crime)

BRANKA Eu que me casei decorando cada detalhe do teu corpo não me lembro de mais nada, tive medo até hoje de ver qual parte sua mais envelheceu. Mas estou com bel-prazer de aproveitar essa alforria da sua secura para livrar-te desse lodo que choras; pretendo te ajudar a expurgar suas agruras. Para quem não faz da aurora o inicio de mais um dia de pesadelo sempre é possível amanhar novo. (Vira Alexei e lava seu peito) Levante o rosto, cedro da minha seiva! Só está cansado, Alexei, de ser uma rocha a naufragar as tantas naus de seus temores! (Esfrega-lhe o peito) Tem no peito um exército incorruptível, isso lhe custa o coro. Ampute as pernas se for preciso perder os passos rumo ao inferno de ser mil sem saber viver como um, meu amor! Não marche mais como um líder autoritário das suas emoções. (Branka abaixa e lava a genitália de Alexei) O macho tem esse vicio de mascarar sua feminilidade atrás da bravura. Só o hipócrita é uma muralha sem fim, sempre é possível dar uma volta no que te afasta de si. Seja cavalheiro com a fragilidade, homens que também sabem se estampar delicados são duas vezes mais másculo, desfilam garanhões e nos tocam com as penas do mais possante pavão.

(Ele a levanta olha em seus olhos e confessa terno)

ALEXEI - Com certeza eu não entendi nada, nada da vida. Não desvendei a cólera, não desmatei meu instinto, não fui um bom pai, um marido bruto que parecia ralar em uma ferrovia na hora de ninar a sua senhora nos braços... Não dá mais tempo para renascer, meu amor, as cartas já foram lançadas na mesa e perdi meu maior patrimônio para minha própria ignorância: hipotequei meu ser! Perdi! Olha para mim, Branka! Foi-se a ultima rodada, e eu perdi! Fenecerei te deixando todas as dividas do que não tivemos audácia de ser! Por favor, nunca me perdoe! Queime meus retratos, mude desse sitio, case-se com alguém de outra cor, doe meus trajes, esqueça meu cheiro, não espalhe o que fui! Partirei, e deve sim ser colada outra historia por cima desse nosso desastre. Só você pode fazer isso!

BRANKA – Não fala mais nada, Alexei!

(Um doce piano. Ela tira o salto e entra no banho molhando seu vestido e ele fecha os olhos, Carinhosamente Branka lava Alexei.)

ATO II

(Vemos o jovem Mikhail passar pela janela dos fundos da sala, abaixa-se perto do correio e apanha uma carta que estava no chão. Branka o vê, ansiosa caminha até a porta e abre antes mesmo do rapaz bater.)

BRANKA – O verão voltou!

(Mikhail solta a mala, coloca um envelope debaixo dos braços e a cumprimenta com as duas mãos.)

MIKHAIL – (Acanhado) Quem me dera ser o verão, senhora! Sabe que se eu pudesse trazer bons tempos para pessoas como você e meu doutor seria o sujeito mais feliz do mundo! Sou apenas um infantil pupilo de Alexei que vem mais uma vez abusar da sua boa vontade!

BRANKA – Nem deixe Alexei escutar isso! Se soubesse como sua presença acende aquele ranzinza! Entre, bom Mikhail, encoste suas malas em qualquer canto que as levo para o quarto de costume!

(Mikhail entra.)

MIKHAIL – Obrigado, Senhora!

(Branka fecha os olhos)

BRANKA – Antes, faça a felicidade me dar um susto: conte que veio para ficar uma boa temporada conosco!

MIKHAIL – Infelizmente voltarei para Moscou em três dias! Vim apenas buscar as próximas páginas da tese! O estado anda muito impaciente!

BRANKA – Que pena! Alexei mais do que nunca precisa de um bom amigo ao seu lado.

MIKHAIL – Como ele está?

BRANKA – Daquele jeito! A tuberculose cada dia mais a caçoar de seus pulmões! Conhece aquele bronco! Parece fazer questão de descer sem cerimônia as escadas do fim. Guerreio sozinha para que a vida o perdoe do exílio de si e deixe meu marido respirar em paz!

MIKHAIL – O que Alexei tem de difícil, tem de gênio! Abriu mão da vida para pousar na palma a medicina. Esse grande homem tem feito descobertas incalculáveis para saúde da humanidade. Suas achadas têm causado alvoroço em todo meio!

BRANKA – Tão bom ver teus olhos flamejarem pelo biruta! (Solta o ar e fala baixo) Dá um pouco de sentido para as minhas escolhas. Bom, Mikhail, não há nenhum motivo para cerimônia entrar por essa porta junto com você, então trate de se sentar, e se preciso acalmar os pés da viagem jogue os sapatos pela janela, só não me obrigue a ter cuidados de visita com alguém tão apreciado por nós.

(Mikhail deixa um pequeno riso escapar)

MIKHAIL – Obrigado Senhora!

BRANKA – Um dia, rapaz, ainda me chamará apenas de Branka! Aí saberei que realmente entendeu o pacto de afeto que temos por ti!

MIKHAIL – Juro que criarei essa audácia!

BRANKA –Assim espero! Vou avisar Alexei que chegou, e logo em seguida esquento um chá para acalmar-te da longa viagem.

MIKHAIL – Desculpa, senhora... (Ele ri sem graça)Branka...(Receoso) Antes, seria de bom grado lhe entregar uma carta da penitenciária que estava a voar de seu correio.

(Com a boca do estômago torcida, Branka pega a carta.)

BRANKA – Estranho, segunda notícia que recebemos de Ivan em menos de um mês!

MIKHAIL – Como estão as coisas para ele?

BRANKA – Não sabemos, Mikhail! Ivan escolheu o caminho dos perversos, e nós, por mais triste que seja não queremos nem ler as pistas do inferno! Entregarei ao pai com a certeza que o mistério fenecerá intacto.

(Branka sobe para o quarto de Alexei que está dormindo, ela entra e lentamente abre as cortinas. Alexei acorda e assiste alienado a atitude de Branka.)

BRANKA – Tem um único raio de sol a sua espera na sala!

ALEXEI – Avise Apolo para não gastar sua brasa comigo, ainda tenho sono.

BRANKA – Mikhail chegou ansioso, cheio de notas dos homens da cidade grave. Eles tem falado muito de ti!

(Levanta-se quase que rapidamente.)

ALEXEI – Finalmente! Há meses aquele garoto me deve essa visita. Dessa vez que demência daquela urbe o moço se deu o trabalho de carregar até mim?! Espero que me conte da bomba que estalou no chá da tarde daqueles intelectuais chatos!

BRANKA – Vista-se, Alexei! Mikhail ficará somente até sábado.

ALEXEI – Tempo o suficiente para voltar a me abominar!

(Alexei levanta-se, veste o casaco e apronta-se para descer.)

BRANKA – (Tímida mostra-lhe a carta.) O ingênuo carteiro atirou certeiro mais uma vez o veneno no alvo. (Entrega a carta de Ivan para Alexei) Chegou outra carta da penitenciaria!

ALEXEI – Precisa novamente de um mapa até o lixo, Branka? Esqueceu o endereço das nossas decepções ou faz isso para me testar?

BRANKA – Desculpa, Alexei, faço por algo mais sutil: desespero de mãe!

ALEXEI – Câncer não nasce no ventre materno! A maldade só tem uma mãe: a ignorância!

BRANKA – (Fala fechada quase só para si) Às vezes concordo que errar é a coisa mais humana que existe!

ALEXEI – A perversidade também é, Branka! Pense apenas nisso!

(Pega a carta da mão de Branka e guarda no armário. Quieta, a esposa engole a dor e desce. Luz apaga no quarto e acende na sala.)

BRANKA – Tem fome, Mikhail?

MIKHAIL – Não senhora!

BRANKA – (Desnorteada) Vou preparar algo para você!

(Branka esconde o rosto e rápida encaminha-se para cozinha)

MIKHAIL – Estou verdadeiramente satisfeito!

(Branka retorna bruscamente em direção a escada, tonta arrepende-se, vai até a cozinha e atrapalhada derruba as panelas.)

MIKHAIL – Está tudo bem?

(Branka abaixa-se e junta às panelas sem a menor atenção.)

MIKHAIL – Branka?

(Branka passa reto por Mikhail, mas ao subir as escadas sua pressão baixa. Ela senta e Mikhail de longe se levanta preocupado. Ela quase chora, pára e respira de olhos fechados.)

MIKHAIL – Aconteceu algo coisa, Senhora?

(Branka tira forças não sei de onde e levanta-se)

BRANKA – Não liga, Mikhail, sou uma besta exagerada mesmo! Culpo-me até por esquecer as panelas no meio do caminho! (Disfarça e ri) Esqueci teu chá! (Respira e simpática volta para cozinha. Alexei desce as escadas.)

ALEXEI – O que aquelas pestes querem de mim agora, bom rapaz?

MIKHAIL – Bom dia, Dr! Espero não estar sendo inconveniente de chegar assim... Pensei em mandar uma carta avisando, mas vim de urgência.

ALEXEI – Pare com esse ritual de educação, Mikhail, já te disse mil vezes que você é o único da espécie humana que não precisa limpar os pés para pisar em nosso sitio. Vamos, me conte logo, comece pelo pior.

MIKHAIL – Devido ao sucesso da tese, o estado me mandou “apressar-te” com as ultimas paginas!

ALEXEI – No sábado então junte todas as cadeiras dessa sala e as carregue para aquelas sanguessugas, pois vão ter que esperar sentados pelo fim da tese.

(Mikhail tira do bolso um outro envelope)

MIKHAIL – Mandaram os rublos pelo pagamento da primeira parte da tese enviada e já um bom adiantamento pelo restante.

ALEXEI – Entregue para, Branka! Esquecem que conversam com um homem doente, mandam-me dinheiro... (Irônico) Não me mandaram nada que eu possa levar da vida?!

MIKHAIL – Mandaram medicamentos para o senhor.

ALEXEI – São novas descobertas?

MIKHAIL – Os mesmos comprimidos.

ALEXEI – Leve de volta.

(Branka volta com o chá e os serve)

BRANKA – Deixe de ser teimoso, Alexei! O estado levanta uma bandeira branca.

ALEXEI – Durante vinte anos hesitaram meus escritos, agora querem beber da minha fonte?! Diga a eles, Mikhail, que não tenho previsão para terminar! E paremos com esse assunto chato. Vamos afamar a boa alma que veio nos visitar! Sente-se, Branka, tenho certeza que Mikhail tem boas novas do movimento artístico de toda Russia para nos contar.

MIKHAIL – Com toda certeza, Dr. Muitos espetáculos, exposições inovadoras, tem acontecido por toda Russia! Trouxe para senhora até um livro com fotos de um formidável balé que assisti em São Petersburgo. (Mikhail pega em sua mala o livro e mais alguns presentes) Ah! Lembra que a senhora tinha me dito que sonhava ver as catedrais pintadas por Andrei Rublyov?

BRANKA – (Ansiosa) Claro, Mikhail!

MIKHAIL – Visitei a Catedral da Anunciação do Kremlin, a Catedral em Vladimir e a Catedral de Trindade e lhe trouxe gravuras das pinturas de Rublyov!

(Entrega para Branka o livro do balé e as gravuras que ela vê com os olhos cheios de lágrimas.)

ALEXEI – Se você soubesse, Mikhail, da sua grandeza! Sua existência me vale mais que um exército inteiro de amigos.

MIKHAIL – Espero que isso não seja um abuso, Dr. Alexei!

ALEXEI – Abuso meu não ter como te revidar tamanha felicidade que dá a minha dona.

MIKHAIL – Para o senhor, trouxe uma edição única da autobiografia de Gorki “Ganhando meu pão”, veja na segunda pagina, está assinada pelo próprio, uma raridade!

BRANKA – Como conseguiu esse milagre, Mikhail!

MIKHAIL – Meu tio tem bons contatos no meio literário! Não tive como não lhe implorar esse favor.

ALEXEI – É uma honra, bom Mikhail! Se não sentir-se ofendido, gostaria que entregasse essa relíquia a Branka! Nunca vi alguém tão fascinada pela literatura russa quanto essa cotovia.

MIKHAIL – Claro, Dr.

(Mikhail entrega o livro para Branka)

BRANKA – Não sei a qual dos dois agradecer e muito menos por onde começar essa excursão pelos presentes!

ALEXEI – Agradeça apenas ao mancebo, veio apenas dele a lembrança por nós!

MIKHAIL – Planejo para o fim do ano uma viagem por grande parte da Europa, cursar o máximo de museus que meus rublos permitirem. Prometo trazer lembranças de cada visitação.

BRANKA – Incrível, Mikhail!

(Alexei tosse fortemente, todos ficam apreensivos, Branka o acode. Alexei respira fundo.)

BRANKA – Está com febre, Alexei, é melhor descansar um pouco.

(Alexei faz um enorme esforço para levantar mas não consegue. Mikhail o ajuda.)

MIKHAIL – Eu te acompanho Dr.

ALEXEI – Obrigado, Mikhail! Não se preocupe, Branka, estou em boas mãos. Deixe-nos a sós! Leve seus presentes para devanear contigo pelo jardim!

BRANKA – Claro!

(Alexei e Mikhail vão para o quarto. Luz apaga na sala. Alexei tira os sapatos com dificuldade e senta na cama)

ALEXEI – Fique a vontade que teremos um longo papo, meu caro!

MIKHAIL – Aconteceu alguma coisa, Doutor?

ALEXEI – Muitas e há muito tempo. Mas primeiro, amigo, pegue ao lado da máquina os meus papeis.

(Mikhail junta a papelada e entrega a Alexei)

MIKHAIL – O que são?

ALEXEI – A última parte da tese!

(Tira o cigarro do bolso e ascende.)

MIKHAIL – Chegou ao fim, Doutor?

ALEXEI – Não, e nem vou chegar! (Rasga os papeis)

MIKHAIL – Não cometa esse crime!

ALEXEI – Acalme-se, rapaz! Preciso da sua paciência para poder trazer a chutada conversar que teremos a partir de agora! Sente-se! (Mikhail senta sem entender) Começaremos por aí, Mikhail! Nem sei por que, mas venho afrouxando os cadarços e deixado os calos das minhas desventuras respirarem um pouco. A marcha foi longa até aqui. Estou bem cansado! Tudo que posso fazer por mim agora e me dar essa oportunidade de desabafar um pouco. Esse é o ponto que cheguei!

MIKHAIL – Mas o que te leva a rasgar um trabalho de uma vida inteira!

ALEXEI – Entenda, busquei a cura para uma cólera que vem a tempos acabando com nossos homens! Porem, quem sou eu para entregar essa salvação de bandeja a desconhecidos? Estou longe de ter a bondade de Cristo! Quis fazer descobertas valiosas apenas para provar aos outros o quanto eu sou capaz! Não a valor nenhum nesse meu trabalho. A única questão que me preocupa agora mora com a boa companheira que anda judiada pela nossa vida desperdiçada, há anos a chorar camuflada pelos cantos. Preocupo-me com você também, Mikhail! São os dois únicos indivíduos que perderia os meus últimos dias a pesquisar uma cura.

MIKHAIL – Fico grato com sua apreensão, mas acho que no momento é o senhor que merece toda a cautela.

ALEXEI – Desista de mim, moço, pois eu mesmo me renunciei! Não falo isso como um coitado, pelo contrário, chego pela primeira vez perto de alguma serenidade! Apesar de incorrigíveis, entendo cada erro meu. Isso não é triste, apenas esse fui eu! Preciso ajeitar as tralhas para que Branka não fique sozinha nessa baderna.

MIKHAIL – (Perturbado) Pára com isso, Doutor! Não está tão velho quanto vende, e também não está morto!

ALEXEI – Estou sim, rapaz! Confesso-te com toda afeição: Meu suicídio ocorreu quando parei diante dos vãos da vida e perguntei demais! Empaquei quando abri a janela e puxei assunto com um horizonte...Questionei o infinito! Tudo e todos ficaram pequenos. Apaixonei-me pelo impossível, questões simples me vendiam barato demais. Ali, na vidraça, conversando com Deus, percebi quanto sou miúdo, e nada que eu faça ou encontre será uma notícia que traga as minhas reais questões para perto. Jovem, Mikhail, questionar a natureza das coisas é um tombo sem volta. Hoje penso que a vida foi feita para ser fácil! Eu mesmo me atrapalhei! Meus berros viajaram inúteis, busquei me escutar ao gritar a procura de um eco no abismo, e as respostas que eu precisava para aliviar meus medos nunca voltaram! Somos mais curtos, não temos tempo o suficiente para desvendar as válidas teses dos porquês das malícias, o cenário por trás das costas da morte, o arrastão da paixão, a vulnerabilidade do homem... A vida é um oceano de perguntas e um deserto de respostas. Moro exatamente nesse solitário quebra-quebra e aqui permanecerei até o meu breve fim! (Abre a porta e confere se Branka não está por perto.Tranca a porta.) Porem, levei junto uma grande mulher, enferrujei Branka com o sereno da minha estupidez de não ter a cautela de ser simples. E você pode ser o Oásis para aliviar a sede da minha culpa, Mikhail! Sua bela mocidade, seu bom caráter, sua fidelidade a mim por todos esses anos, me fazem te ver com a suave face da esperança que nunca tive. Queria deixar uma vida para a leoa que enjaulei de forma egoísta junto das minhas covardias. O que pensa de Branka?

MIKHAIL - Não entendi sua questão?

ALEXEI - Não tenho saúde para complicar qualquer assunto, então pretendo ser honesto e certeiro, caro Mikhail! Sem receio, me descreva o que acha de Branka como mulher?!

MIKHAIL - Avisto Branka apenas como sua esposa! Te juro, Doutor, nunca me permiti atravessar a fronteira do respeito que tenho por ti para burilar algum desejo usando a sua senhora como musa.

ALEXEI - Entendo seu temor em me expor qual cobiça teve por minha esposa! Porem, como todo bom varão, Mikhail, somos frágeis ao desfile de uma luxuosa fêmea! Não por ser minha dona, mas ninguém cruza intacto um Davi de Miguelangelo sem despertar algum entusiasmo, e Branka é sim uma dessas obras raras. Peço-te a sinceridade dos seus desejos proibidos como um favor! Preciso saber se aquela altaneira borboleta de quem assaltei as cores das asas, de alguma forma te cativa?!

MIKHAIL - Não sei te responder!

ALEXEI - Está diante de um amigo que valorizará somente sua honestidade! Sei que Branka venera sua presença! Quando vem aqui catar as teses, Mikhail, noto que conversam por horas, o vejo contar-lhe as novidades. Por varias vezes a vi gracejar com suas historias!

MIKHAIL - Sinceramente, Alexei, Branka sempre interrompeu essas risadas! Se quer mesmo saber, tive grande curiosidade em alcançar o porque uma mulher tão potente no olhar se permitia soltar o sorriso apenas pela metade. Ela sempre me perguntou sobre as sinfonias, inovações da cidade, mas quando a respondia entusiasmado, era cortado pela aflição que Branka trazia em ver os acontecimentos apenas pelos meus olhos. Então quando ela calava o olhar, eu interrompia a historia. Nunca fomos até o fim de nenhum assunto que lhe flagrasse a fraqueza de assistir os prazeres pela janela dos outros.

ALEXEI – O plano que tenho em minha mente a princípio parece um tanto desequilibrado, e dependo completamente de um enigma a ser decifrado no íntimo de vocês dois. Direi isso com cuidado para que você leve todo meu juízo para o melhor caminho: Acredito, sem maldade de nenhum dos lados, que você e Branka podem idealizar laços de um verdadeiro afeto após minha partida! Vocês têm uma vida inteira pela frente, penso com esperança que formariam uma boa dupla, poderiam juntos até construir uma linhagem mais digna...

MIKHAIL – (Interrompe) O que o Doutor me dá a entender não soa apenas como desequilibrio, chega perto de ser deselegante e desleal com a entrega de Branka a ti. Não vejo prudência nesse raciocínio.

ALEXEI – (Irrita-se) Por favor, não ajuíze com essa razão clichê que governa falsos princípios de honestidade. Não julgue meus atos desesperados como se avaliasse um sujeito normal! Parta do ponto que sempre fui equivocado. Dê algum valor para essa minhas insanas vontades finais de melhorar. Cheguei ilegal até aqui! Do fundo da minha fragilidade, posso estar mais uma vez errado, mas faço isso para tentar ser um pouco menos individualista! Saiba desde já, não sou bom nisso, mas quero tentar lançar pela primeira vez esse dardo do cuidado ao próximo! Mikhail, se você tentar encontrar meus defeitos, se me convencer que continuo besta; fico sem coragem para uma ultima pirueta. Quero só resolver algo mais sensível: o resto da vida que sobrará para Branka sem mim! É muito mais simples, Mikhail! Eu e Branka hoje somos feitos de muitas decepções, essa dor sim é incorruptível, porem, eu vou acabar e ela ficará desamparada com todos nossos erros. Não procuro o perdão, apenas, por completo afeto e carinho, deixar para ela uma oportunidade de ver renascer das nossas cinzas, um coração. Desespera-me imaginá-la aqui sozinha com todos esses monstruosos desacertos.

MIKHAIL – Sim, mas o que o Doutor sugere não tem o menor cabimento!

ALEXEI – Vamos lá, Mikhail! O que faria em meu lugar? Deixaria uma sujeita que foi durante toda uma vida sua melhor metade pagar sozinha a sua dívida ao capeta? Ou a entregaria uma chance de se oferecer em paz, sem débitos a um cara de sua total confiança! Não pense que está sendo fácil, atropelo muito dos meus orgulhos de macho, arraso toda minha posse de marido... Essa é a última oportunidade que tenho de não ser mais só egoísta, entende?

MIKHAIL – Entendo! Mas não pode apostar assim em mim essa responsabilidade de torná-la livre dos seus desastres! Pode não parecer, mas também sou cheio de atropelos, duvidas, canalhices... Sinto decepcioná-lo, mas quem te contou que posso irrigar sua altiva flor?

ALEXEI – Se você me convencer de que despertar em ti alguma cobiça por ela, realmente é demência minha, compreendo! Mas, sinceramente, Mikhail, acho completamente possível a veemência por uma fêmea como Branka brotar em ti.

MIKHAIL –Alexei, não serei hipócrita com você! Branka é uma mulher incontestavelmente apaixonante. Porem, não vejo esse brioso grão como o início do ponto a ser discutido... Existe o espontâneo como único dono do peito: o meu querer, o dela, o do destino...

ALEXEI – (Interrompe) Não te peço de uma hora para outra que se una a minha esposa! Apenas lhe entrego de coração apertado, mas de bom grado, o aval para que, na minha morte, não se sinta culpado em ocupar meu lugar. Só te convoco que ajude ela a se reconstruir. Resgate, Branka! Ela tem em si esquecida a maior mulher que existe, basta você buscá-la. É o único homem que pode e que eu aceitaria que fizesse isso!

MIKHAIL – Agradeço sua confiança, Doutor! Confesso o encanto que tenho por Branka, assim como tenho por ti. Sabe o quanto fui sozinho nessa vida, graças a vocês, aprendi o que é amizade. São de fato as duas pessoas mais importantes que tenho! Terei o maior prazer em estar ao lado de Branka nos momentos difíceis...

ALEXEI – (Inquieto) Me prometa que se desejá-la não pensará duas vezes em domar o seu coração! Conheço os homens, em pouco tempo terão muitos abutres a fisgar aquele anjo como carniça.

MIKHAIL – Te dou minha palavra de que não a deixarei sozinha! Quero sim ter minha família, filhos, mas vindos de escolhas naturais. Não faria isso por ninguém ;a não ser por mim mesmo! Não posso lhe dar certezas de arrebatar por Branka algo alem de uma grande ternura!

ALEXEI –Nem te cobro isso! Afinal, a vida é uma fotografia do instante que não se revela por nada. Mas, Mikhail, lembre-se sempre de jogar tua certeza como um bolo na cara do acaso. Não existe um surpreendente amanhã para quem não se arrisca no agora. Entendi isso tarde demais, estou cansado e doente para derrubar o assombro de pedra que me esculpi. Mas, amigo, tente zombar de ser apenas uma hipótese do que se sonha ser. Esse tapeador que é o destino te assalta caminhos, mas se a fortuna furtada for tua mesmo; ele te deixará sua identidade para, mesmo que miserável de possibilidades, você continue sendo você mesmo. Tive que aprender no baque na trombada! Inventamos cada dia mais modos de não nos repararmos! Toda essa ilusão é só uma luz forte que te cega. Percebo agora que a realidade mora no escuro que cada um tem a humildade de emprestar ao outro.

MIKHAIL – Todo esse capítulo me cobriu de conflito. Preciso pensar nessa conversa!

ALEXEI – Não pondere muito, o coração não é tão inteligente assim! Bom, abandonemos agora tudo isso ao relento da sina para o universo trabalhar solto ao nosso favor. Ajude-me a fazer as malas!

MIKHAIL – Malas para que?

ALEXEI – Partirei pela manhã para Rússia.

MIKHAIL – O senhor não está bem de saúde para essa viagem!

(Alexei esforça-se para arrumar sua mala. Mikhail o ajuda receoso.)

ALEXEI – Sei que não, mas é a última saúde que tenho! Se não puder gastar o resto dela para alforriar das minhas falhas... Ivan tem enviados cartas, pretendo visitá-lo e autorizar essas dores finais a se livrarem de vez das batalhas com a minha alma.

MIKHAIL – O que ele conta nas cartas?

ALEXEI – Não as li! Tenho receio que me desencorajem a desvendar o sentido do perdão! Quero parar de decidir antes mesmo de sentir! Nunca olhei para o meu filho após seu pacto com o príncipe das trevas! Quem sabe ele me ensine algo sobre as razões da perversidade! Preciso entender isso tudo. Será também um bom tempo para que você e Branka se descubram. Mas por favor, preciso que tranque somente entre nós todos esses meus embaraços! E não se assuste com os motores que inventarei para essa viagem?! Existem duas variantes para isso tudo: essa que lancei em ti, e a que Branka ouvirá daqui a pouco!

MIKHAIL – Se a loucura, para mim, até hoje era uma novela solitária armada só pelos doentes mentais; testemunho diante de ti, que a insanidade nada mais é que um protesto atrevido de ultrapassar as próprias fronteiras sem medo de parecer um forasteiro de si.

ALEXEI - Fico bem por notar que distinguiu, mesmo com os pés no chão, a diferença entre um surto e uma libertação! (Pega o que sobrou da tese em cima da mesa) Me ajude aqui com toda essa papelada, Mikhail!

(Luz apaga no quarto e acende lentamente na sala. Branka lê, ao fundo um som de um concerto de piano. Mikhail desce.)

BRANKA – Ele está melhor?

MIKHAIL –Deitou um pouco.

BRANKA – Melhor assim! (Faceira mostra seu livro) Incrível, amigo, trouxe um passeio inspirador para a minha imaginação! Tudo que preciso está aqui, dentro de um livro como esse.

MIKHAIL – Fico ditoso em te abrir essa porta. (Sem jeito) Bom, Senhora, preciso sair, volto antes do jantar!

BRANKA – Vai aonde, Mikhail?

MIKHAIL – (Embaraça-se) Vou até o povoado resolver algumas pendências.

BRANKA – (Estranha) Você com pendências no subúrbio?

MIKHAIL – Algumas questões de Alexei...

BRANKA – Questões de Alexei naquele fim de mundo? Que conversa... (Chateia) Se não pode me contar, tudo bem, rapaz!

MIKHAIL – Não... Escute... Vou apenas buscar o cocheiro de viagem!

BRANKA – Ué, não partiria só no sábado?!

MIKHAIL – (Sem palavras) Sim...

BRANKA – Que aflição, Mikhail, pare de cambalear as idéias em sua cabeça! Aconteceu algo de diferente que não quer me contar?

MIKHAIL –Só Alexei que pensa em partir amanhã cedo para Moscou mas sua saúde está muito frágil, não acho uma boa idéia!

BRANKA – (Apoquentada) O que ele vai fazer lá?

MIKHAIL – …Nada demais!

BRANKA – Então para que ele vai?

MIKHAIL – Não sei o que ele vai fazer! Acho apenas que deve convencê-lo a não partir nesse estado!

BRANKA – Claro que não o deixarei partir assim! Que diabo faz Alexei ter essa idéia besta?

MIKHAIL – Não sei mesmo! Independente disso preciso cumprir seu pedido e trazer o 0Y

BRANKA – Não há mais necessidade de trazê-lo!

MIKHAIL – Com todo respeito, Senhora, não ligo de, se preciso, levar o cocheiro de volta, porem é necessário que eu cumpra meu combinado com Alexei e o traga aqui.

BRANKA – Está certo! Cumpra seu dever de funcionário que cumprirei o meu de esposa. Preciso saber o que se passa!

MIKHAIL – Até mais tarde, Branka!

BRANKA - Até!

(Milhail sai. Branka pensativa caminha pela sala, pouco depois vai ao quarto e entra lentamente. Alexei fuma na janela.)

BRANKA – Pensei que estava descansando!

ALEXEI - Tento, mas feito sebo o repouso escorrega da mão do meu sossego! Sinto-me cada vez mais esgotado! Sorte de quem não brinda com dia-a-dia com a agonia como uma eterna virada de mais um ano triste.

BRANKA – Precisa de qualquer jeito descansar, Alexei!

ALEXEI - ( Fatigado) Eu sei! O corpo me pede tanto, tanto... Mas a mente perambula irrequieta por um bosque tenebroso, indigesto, sem um canto confiável para deitar minha calmaria! Sigo mal, como uma goma chata derretida na minha própria sola, pisoteando-me a cada lugar que aspiro chegar. Tudo em volta me espanta: No arrebol da noite já sou vigiado por uma lua carrancuda, e no lusco-fusco do alvorecer, o sol vem para me derreter qualquer força de vontade! O que eu fiz para todo esse mundo?

BRANKA – O que tem em ti? Que susto te derrubou de tão alto?

ALEXEI – Preciso logo de uma lança para arrasar essa sombra de desesperança que me enfraquece.

BRANKA – Talvez essa fraqueza seja fome! Tem se alimentado mal. Quer que eu prepare algo para você?

(Branka chega até Alexei e coloca a mão em seu ombro carinhosamente.)

ALEXEI – Não achegue tão próxima! Há perigo em todas as minhas conclusões. Enlouqueci no pior sentido, desafinei meu ser, Branka Volk! Cheguei no beco mais estranho da minha existência. Onde a verdade e a mentira revezam a mesma aparência. Afaste-se!

BRANKA – (Ela insiste e fica) Não faz sentido eu temer algo que já perdi!

ALEXEI – (Relaxa) Que bom que pensa assim!

BRANKA – Serei sua sócia até na loucura. Só me ensine a viajar para essa caverna que agora te escurece, só preciso estar ao seu lado!

ALEXEI – (Pequeno riso triste) Quer se ajuntar aos confins dos delírios? Venha! (Abre o resto da cortina e olha para o horizonte. Branka o acompanha na janela.) Olhe bem o por do sol? Esse sim é lúcido! As cadeiras esculpidas, as paredes de tijolos, as tonalidades dos tecidos, as universidades, os amantes, as doenças, os tantos Deuses... Apenas miragens bem arquitetadas! Somos feitos de um monte de trechos inventados ao longo do tempo. A realidade está ali fincada apenas em como a natureza se mostra. Olhe o céu, este sim é real, está ali por si só, sempre perfeito, sem nenhum homem entalhando suas nuvens. O céu é tão lúcido como um sujeito que nasce cego, surdo e mudo, Branka! Reservado em si, vive a existência sem a construção das verdades já imposta! Desde o dia que abrimos os olhos pela primeira vez, nos tornamos vitimas da fantasia. Um cego, surdo e mudo, por ser impenetrável, tira apenas suas conclusões instintivas das coisas. (Aponta todo horizonte) Olhe bem, diga se não estamos dementes: o céu não fala nada, o sol não ouve, a lua não enxerga, o mar é milhões de vezes maior e mais necessário que nós e mesmo assim fica calado, apenas indo e vindo em si mesmo. Somos erguidos de várias ilusões imutáveis. Eu não topo mais conviver com esse meu ser que berra, sente, pisa, sem o reconhecimento do território do próprio ser! O céu está aí esfregando na nossa cara que só se pode ser amplo, ao criar o próprio por do sol, viver a maior descoberta, as mais belas transformações, trancado em si. É hora de cerrar as cortinas dessa alucinação que é o teatro dos homens, cegar a vista dessa minha existência nublada e deixar nascer o que sou como um sol , acalmar o dia em mim até ,ao fim, assistir esse meu sol partir em paz na solidão do por do sou.

BRANKA – O que posso te dizer da janela desse manicômio, meu marido? Concordo que somos todos uma anedota da lucidez! Enfim, desmanchemos nossos bonecos, mas o que fazer com a sobra deles se a realidade está cada vez mais sem pé nem cabeça!

ALEXEI – Como pode ver pela bagagem, eu vou para Rússia!

BRANKA – Fazer o que lá?

ALEXEI – Levarei uma tese sem sentido para os intelectivos me deslembrarem de vez! (Alexei inicia pequenos risos) E depois, vagarei sem rumo pelas ruas frígidas de Moscou, olharei firme no rosto de desconhecidos...Vai ser hilário ver uma legião de gente vazia buscando serem admiráveis umas para as outras; posso entrar na barbearia e escutar conversas inúteis, sentar no parque e assistir de camarote imaturos casais a rolar pela grama felizes a caminho da amnésia de que no fundo estarão cada vez mais sozinhos. Estou finalmente pronto para rir de tudo e de todos! Só isso! Rir, Branka, zombar dos enganos. Isso me faz sentir livre desse meu tolo que carreguei até aqui.

BRANKA – Não tem condições de viajar só, vou com você para Moscou, Alexei!

ALEXEI – (Agressivo) Por que bolaram a dívida do casamento? Eu deveria ter estudado somente essa enfermidade. Branka, de uma vez por todas, creia que somos dois! Eu vou para lá, você fica aqui. Simples! Paremos de nos escoltar! Vamos encerrar aquele apavorante tratado que o do Sacerdote nos impôs. Já nos debulhamos o suficiente para entender o quanto não saber ser “só” adoece o espírito. Livra-me de nós pelo menos no fim da minha vida?! Vou para Moscou viúvo!

BRANKA - Que bicho ferino desatou de ti para me avançar assim? Já estamos bem maltratados; precisa mesmo me dar mais esse golpe? Sugeri ir para Moscou por ingênuo companheirismo!

ALEXEI – (Irônico) O que deu em ti para de repente cuidar de arranhadas incicatrizáveis? Acabaram-se nossas perspectivas! Vejo que não somos tão responsáveis pelos nossos desperdícios! Como todos, caímos na rede do desatino de que o amor é para ser cultivado em uma carceragem a dois. Gosto-te, mas amaria durante a vida mais de mil. Planejaram um tal romantismo besta de que no amor é fiel ser o outro! Foi aí que nos arrastamos e esvanecemos! Nunca fomos e nem seremos a mesma pessoa, apenas acreditamos estar onde nós mesmos inventamos.

BRANKA – (Magoada, com desleixo) Então vá, Alexei Medved! A minha torre já está bem bamba para eu me dar ao luxo de equilibrar seus frenesis de macho. Também posso ser de mil, mas se fui até aqui somente sua, foi apenas por que esses tantos mil não poderiam desvendar meus detalhes, e uma mulher se entrega a um só, não por lealdade, mas por querer intimidade com a mão que tateará seus segredos. É melancólico, mas chegou o momento de aceitar que o respeito, único alimento que sustinha a nossa união, apodrentou de vez. Pronto, assim vai ser, não terei mais coisa nenhuma com sua dor. Gaste seus últimos deslizes, desamparado, zombando dos ignorantes. Dessa vez doarei o resto da minha vida primeiro a quem mais merece: eu mesma!

(Branka sai e deixa Alexei que abaixa cabeça não tendo certeza da própria atitude)

Passagem em dois tempos, sem diálogos, ao som de: Chopin – “romantic piano”.

Tempo I -

(Luz acende na sala. Branka, Alexei e Milhail jantam quietos. Luz apaga.)

Tempo II -

(Luz acende na sala, Alexei, fraco, despede-se de Mikail que o ajuda a caminhar até a porta carregando suas malas. Luz acende no quarto, Branka observa dá janela o marido partir. Luz apaga.)

INTERVALO AO PÚBLICO PARA QUE OS PERSONAGENS VIVAM SEM TESTEMUNHAS.

ATO III

Passagem em cinco tempos, sem diálogos, ao som de: Chopin – “romantic piano”.

Tempo I –

(Luz acende na sala, Branka sozinha no sofá, Mikhail entra e lhe serve um chá.)

Tempo II –

(Luz acende na sala, Mikail e Branka divertem-se jogando cartas. Luz apaga.)

Tempo III –

(Luz acende no quarto, Branka, saudosa, alisa os lençóis da cama antes de dormir. Luz apaga.)

Tempo IV –

(Luz acende na sala, Mikhail concentrado estuda na mesa de jantar, Branka entra sorrindo com frutas que apanhou no jardim, oferece uma pêra para Mikhail que aceita, morde e os dois riem. Luz apaga.)

Tempo Final –

(Luz acende na sala, áudio abaixa lentamente, em uma fusão, Mikhail continua no piano a musica “romantic piano” - Chopin. Branka, encantada, o assiste tocar até o fim da musica.)

BRANKA – Que lindo, Mikhail! Não conhecia esse seu dom. Quanto segredo guarda em ti! Cada dia publica uma nova virtude!

MIKHAIL – Que isso, senhora, apenas estapeio as teclas!

BRANKA – Alexei não toca nesse piano desde que despertou do coma! Ele e o filho choviam alegria nesse instrumento... (Branka caminha até o piano e enquanto fala a receita do bolo, toca delicadamente uma musica que lembra aquele momento.) Enquanto eu preparava nosso bolo: 6 ovos, 2 xícaras de açúcar refinado... (Inicia um leve choro) 2 xícaras de farinha de trigo, 1 colher de fermento, 1 pitada de sal ,8 colheres de água ,gotas de baunilha, 1 litro de leite, 4 colheres de chocolate...

(Quando Branka está prestes a desabar de vez o choro Mikhail acode e a leva até o sofá)

MIKHAIL – Desculpa, não tive a intenção de enflorar suas dores.

BRANKA – Não foi você, Mikhail, qualquer aragem das lembranças tem irrigado a saudade em mim. Perdi meu filho e meu marido! Você tem sido meu equilíbrio... Sem você aqui acho que eu teria feito uma besteira.

MIKHAIL –Acalme-se! Acredito que Alexei volte em breve.

BRANKA – Hoje se completa o oitavo mês desde que o turrão partiu para Moscou... Doente daquele jeito, nem gosto de imaginar o que aconteceu!

MIKHAIL – Então não idealize bobagens.

BRANKA – Não tem como, Mikhail! Tenho engolido vespas de tanta ansiedade e a tormenta não me afrouxa o colar. Meu coração foi pilado e jogado ao nada, como um papel já todo riscado! Vai ver foi isso que me tornei.

MIKHAIL – De jeito nenhum! (Senta-se ao lado de Branka e segura suas mãos) Entendo a sua autoflagelação, mas posso dizer-te que agora seguro um dos galhos da mais formidável bétula que vi brotar; apesar de apanhar da tempestade, e assistir toda sua folhagem partir, continua viva e majestosa.

BRANKA – Que amigo incrível é você?! Em plena queda, sempre abicha fôlego para inflar de auto-estima o meu balão vazado!

MIKHAIL – Tem me feito desmedido testemunhar o quanto pequenas gotas de magoa podem contaminar todo um copo cheio de nossas escolhas mais límpidas. Vejo de perto, na qualidade do maior amor que residiu nessa casa: É preciso tomar cuidado com os detalhes da convivência! São eles que colam o palpável de uma relação.

BRANKA – Só posso agradecer-te por, durante todo esse tempo, abrir mão da sua vida em Moscou para acalantar minha solidão! Alexei sempre esteve certo quando dizia que, debaixo da sola de Deus, não existe alguém mais generoso que você. Digo-te, para sair desse vão já me entregou bem mais do que as mãos, preciso que saiba que está livre para recuperar seu venturoso cotidiano na cidade.

MIKHAIL – Livre, senhora? Eu seria mais um entre tantos idiotas, se não notasse que tenho bebido na sua aflição os maiores ensinos que a alma pode estudar. Sinto-me até um golpista de não poder devolver-te algo tão intenso quanto tens partilhado comigo. Posso te contar um segredo?

BRANKA – Mais um? Conte! Esses teus mistérios me ressuscitam.

MIKHAIL – Parei um pouco de estudar a medicina... (Os dois olham-se fundo) A senhora me inspirou a escrever uma novela!

BRANKA – Eu? (Levanta-se sem graça com um sorriso maior que o rosto) Então estamos pagos. Enquanto anota a minha dor em seus personagens, eu me apoio nesse teu afável olhar para me manter de pé. Mas me conte, fiquei curiosa, o que tirou de mim para os teus personagens?

MIKHAIL – Conto o rumo de duas irmãs pulcras e completamente distintas que vi habitarem a ilha particular do seu âmago, senhora! A primeira sua: peregrina despovoada por toda Rússia atrás de uma criança bagunceira que uma cartomante jurou-lhe ser filha de seus desejos mais privados. Essa inquieta mãe, parte atrás do ingênuo passado de cachos encaracolados, mas quando depara com a moleca, percebe que a sua lagarta infância saiu do casulo e, já adulta, borboleta, voeja sem pegadas para ainda mais longe daquela progenitora. Então, a mãe daqueles sonhos distantes, chora compulsivamente com saudades de si, sem saber parar.

BRANKA – (Fragilizada se reconhece) E a outra irmã?

MIKHAIL – A outra segue o sentido contrário. Ignora o que foi até ali, tira as surradas sandálias da razão que a seguiram desde cedo, deita os pés pela primeira vez na branda trilha do “de hoje em diante”, fecha os olhos para não pensar duas vezes no medo que faria seu entusiasmo se arrepender de seguir e, sem perceber que o que precisa para ser livre sempre esteve no bolso da sua imaginação, choraminga muito, e viaja veloz deixando cair pela estrada todas as estrelas da sua essência. Corre, vaza-se, corre e vaza-se, com a esperança de um dia topar por aí alguma dela mesma que não precise mais chorar.

(Branka de costas, defendendo-se de si mesma, limpa as lágrimas dos olhos e vira lentamente para Mikhail.)

BRANKA – Como elas terminam?

MIKHAIL – Me falta o fim da novela, pois elas nasceram em mim só para interromperem o seu choro, senhora! Só terminarei a escrita quando eu te vires cessar os lamentos.

BRANKA – (Pequeno riso constrangido) Cuidado, Mikhail, essa novela pode não ter fim!

MIKHAIL – Duvido! Tenho certeza que terá um final surpreende e feliz.

BRANKA – Gosto tanto de conversar com você! Faz-me tão bem.

MIKHAIL – Fico honrado em ouvir isso, Branka!

BRANKA – (Sorri) Será que Deus escutou minhas orações? Me chamou de Branka?

MIKHAIL – Escapou...

BRANKA – Ótimo que escapou, então tranque logo a porta para que esse “senhora” não volte a ser pronunciado. Já se passaram duas estações que estamos sós aqui, já era hora, Mikhail!

MIKHAIL – Está certa, Branka!

BRANKA – É tão mais agradável te escutar me chamar pelo nome!

MIKHAIL – Que bom, Branka.

(Os dois riem e descontraem-se)

BRANKA – (Empolga-se) Vamos fazer algo que não faço ha muitos tempo: Brindaremos esse passo da intimidade! Enfim, mesmo que por uma noite, quero ficar contente!

MIKHAIL – Isso sim merece um brinde!

(Branka vai até a pequena mesa onde estão as bebidas.)

BRANKA – Há quase vinte anos não sinto o cheiro de uma Vodka, Mikhail!

MIKHAIL – Eu não posso dizer o mesmo, sempre fui um exímio Boêmio.

BRANKA – Não me embriago desde o meu casamento!

(Serve dois copos caprichados de Vodka.)

MIKHAIL – Está pensando em se embriagar?

BRANKA – Não estou pensando nem que sim que não. Estou com preguiça de pensar! Quero brindar, celebrar, esquecer... Só isso! (Levantam os copos antes do brinde.) Brindemos a sua fidelidade e companheirismo!

MIKHAIL – Ao seu contentamento!

(Eles brindam e Branka da grandes goles secando o copo. Mikhail que ainda não bebeu surpreendesse.)

MIKHAIL – (Humorado) Estava com sede!

BRANKA – Ainda estou! Sede de alguma sensação diferente dessa que me cansa e seca. Vamos, Mikhail, coragem!

(Mikhail olha para o copo receoso mas logo em seguida vira. Branka arranca o copo de sua mão e os enche novamente.)

MIKHAIL – O que vai fazer?

BRANKA – Preciso escapar um pouco desse estado habitual.

MIKHAIL – Não precisa encher o copo para mim!

BRANKA – Pára, Mikhail, ingresse comigo! Estava com tanta saudade de me deixar passar um pouco...

MIKHAIL – Está mesmo com um sorriso que nunca vi!

BRANKA – Então brindemos de novo antes que ele escape da minha face.

(Branka passa o copo para Mikhail, os dois brindam.)

BRANKA – Aos raros momentos.

MIKHAIL – Devagar!

(Dessa vez olham-se e ela bebe devagar.)

BRANKA – Assim está melhor?

MIKHAIL – Está!

BRANKA – Não sabia que era um homem assim tão correto.

MIKHAIL – Não sou mesmo, Branka, só me preocupo com você!

BRANKA – Despreocupe-se, hoje quero a alforria da aflição! Preciso apenas extrapolar minha alma.

(Branka dá mais um gole grande na vodka e solta-se sentando no sofá.)

MIKHAIL – (Entrega-se) É verdade! Vamos então fazer do seu jeito.

(Mikhail também da um grande gole e senta.)

BRANKA – (Passeando o olhar pelo teto) Sei que a paz existe aqui nessa casa. Foge de nós como um fantasma medroso pelos cômodos, só preciso convencê-la que lhe queremos perto!

MIKHAIL – Primeiro passo, Branka: recomeçar um carinho por si mesma!

BRANKA – Eu não quero ter a impressão de um recomeço, colocar um ponto final no que fui. Sou minha historia completa, sem saltos, nem páginas rasgadas! (Levanta-se e pega a garrafa de vodka) Isso seria esconder do meu próprio espelho os traços das minhas inúmeras facetas! Para que maquiar uma ruga e driblar a idade, se ela é a única amostra dos penares que passei para, agora sã, buscar um porto seguro? (Senta no sofá e enche os copos. A partir daqui os dois beberão aos poucos, enchendo os copos sempre que preciso.) Mesmo construída por vários episódios desperdiçáveis, tenho o prazer de lembrar que estive presente em todos os anos da minha vida. Preciso só da sensação de ter livre paginas cândidas para ousar uma próxima etapa... A reticência me agrada, mudar de capítulo acarinha meu ânimo. (Branka dá um pequeno gole) Nunca abandonaria na estação, antes de embarcar no trem do imprevisto, rumo ao próximo fado, meu baú de retratos mofados, frascos de perfumes vazios, livros já lidos, cartas de amores brutos; são eles que me deixarão os rastros do que , de verdade, eu trouxe de mim até aqui! As portas da transformação estarão sempre escancaradas para quem quiser embarcar na inovação. Não acredito que exista um futuro envelhecido! Apenas mortais tímidos que deixam o trem partir por vergonha de terem sido fracos! Falo isso, Mikhail, porque fui assim! Senti por varias vezes a brisa me puxar pela orelha rumo ao desconhecido! Escolhi ficar... (Envergonha-se) Desculpa apresentar-me assim... Parece um teatro, mas...enfim, essa figura dramática sou eu! (Bebe.)

MIKHAIL – Sinal que ainda guarda muita vida dentro de si! Acho fascinantes pessoas como você!

BRANKA – Como eu? Como assim?

MIKHAIL – Sensíveis. Pessoa que deixam quem está fora escuta o som do sangue delas cruzar as veias.

BRANKA – Te acho tão bem resolvido com os seus barulhos.

MIKHAIL – Pode ser! Mas eu não presto tanta atenção no meu universo particular. Tapo os ouvidos e me jogo em tudo. Acabo que, na maioria das vezes, essa minha impulsividade de conhecer o mundo inteiro ao mesmo tempo, me faz voltar de mãos abanando para dentro de mim.

BRANKA – Passa tanta leveza, Mikhail! Onde em ti guarda tão bem as suas desilusões?

MIKHAIL – Não as guardo, deixo-as me roubarem o que querem e partirem sem mim! O teco que até aqui saboreei do viver ainda não lambuzou o meu bigode de arrependimentos, Branka!

BRANKA – Nunca se perdeu em ninguém?

MIKHAIL – Atirei-me pouco as ameaças do amor, no entanto, necessitado em plagiar apegos, confesso que andei pelos seios de muitas damas de Moscou. Escapei do amar por um só motivo: uma paixão qualquer não me desarma. Sou sagitariano, filho da chama; do doce eu quero o vício, não saberia me jogar do precipício preso por um cordão! Branka, quando eu rasgar meu traje para a dedicação a uma dona, estarei por ela, para sempre desvendado. E isso é um perigo!

BRANKA – Quando o amor te convida para ficar, o perigo de embarcar é não saber partir, viver trancado em um. Abafar sua feição pela terra do outro até se tornar uma estátua que enfeita a sala de estar de um bem que não é a do teu “ser”. (Bebem... bebem...)

MIKHAIL – (Respira, ri sozinho e relaxa) Se surpreender é pecado?

BRANKA – Acho que não. Afinal, Até Deus deve estar um pouco surpreso com isso que nos tornamos.

(Os dois riem. Ele para e pensa leve)

MIKHAIL – Então sentir de surpresa também não é pecado?!

BRANKA – Não sei o que quer... Sentir vontade de matar é uma coisa, de amar é outra. O sentir é só um impulso do desejo do caráter.

(Os dois olham-se encantados e riem novamente. Ela enche os copos.)

MIKHAIL – Você tem talento para ser louca.

BRANKA – Você já está bêbado? Não me chamou mais de senhora e ainda me chama de louca!

MIKHAIL – (Sem Graça ,levanta-se meio bêbado) É...confesso que o chão começou a afrouxar!

BRANKA – Estou brincando, Mikhail! Sente-se. Tem me erguido tanto nesses últimos tempos... Bambear um pouco não nos roubará a honestidade por todos esses meses dor.

(Mikhail senta-se)

MIKHAIL – Não sei se a bebida me faz ter razão, me entrega ou me vende barato...Me sinto arriscado, Branka, minhas cobiças guardadas roubam as rédeas do meu atrevido mais desastrados.

(Branka lhe serve a bebida)

BRANKA – Quer contar mais algum enigma, Mikhail?

(Mikhail dá um pequeno gole)

MiKHAIL – Quero contar para mim, você acolhe o escutar?

(Branka também dá um gole)

BRANKA – Sempre.

MIKAIL - Que bom, pois as pistas das minhas memórias são pegadas que me recomendam as linhas do contorno que percorri para chegar até esse jovem rascunho de gente que sou. Preciso falar de mim, deixar escapar um pouco do que sonego.

(Mikhail bebe)

BRANKA – Por favor, Mikhail, fale o que quiser.

MIKHAIL – (Abaixa a cabeça, levanta o olhar e fala) Quando eu era menino, em frente ao quarto de papai havia uma enorme aquarela de um palhaço venturoso. Curiosamente eu trancava os olhos para aquele quadro. Corria dele! O sorriso enorme do bobo rasgava o rosto, chegava a me ofender! Acho que a coragem de ser demasiadamente feliz me chocava desde cedo. Já na infância desconfiava dos trejeitos da paz. Talvez seja essa a minha esfinge, tratar o sossego com simpatia por pura educação, sem dar uma chance de me querer bem por mais de cinco minutos sem questionar qual susto afastará de mim o agrado da calma.

BRANKA – Há tanto tempo precisava escutar isso. (Pequeno gole) A calmaria para mim sempre foi só uma soneca da dor após almoçar a minha força. A algazarra do silêncio de notar a minha própria marionete cheia de pensamentos trancados em uma alma de lenha, sem atitude , com as cordas do animo que me move cortadas pela fraqueza de temer a perda de controle. Temi montar no lombo do instinto e deixar as direções serem selvagens demais.

MIKHAIL – Como cabe tanto medo em nós?

BRANKA – Engraçado, nesse instante não estou com medo.

MIKHAIL – (Pequeno sorriso) É a vodka.

BRANKA – Não. Acho que é você mesmo! Estou me sentindo em outro andamento. (Aproxima-se) Não sei se isso é justo com os outros. Estou sem Alexei em mim, sem Ivan... Estou somente aqui. Acha egoísmo me sentir assim?

MIKHAIL – Às vezes temos que optar entre ser comodista com os outros ou com a gente mesmo. Se isso muda alguma coisa, saiba que diante de mim o bando das tuas coragens está livre.

BRANKA – (Passa a mão no rosto de Mikhail) De onde vem essa vontade de chegar até um lugar avivado de si se despejando absolutamente no outro?!

MIKHAIL – Talvez essa vontade more na mesma travessa onde somos derrubados vulneráveis por um desejo inimigo.

BRANKA – (Tira a mão do rosto de Mikhail) Inimigo?

MIKHAIL - Se apaixonar é invisível e perigoso! (Passa a mão no rosto de Branka) Sentir por alguém mais do que sentes por si e já saber, antes do toque, que doou para ela a porção mais primitiva sem indagar ao menos quem era essa no seu mundo? O amor peregrinando por uma terra de si que agora figura uma fronteira entre o que você é e o que apetece.

BRANKA –Se eu te beijar o que acontece comigo?

MIKHAIL – Estou mais preocupado em saber o que acontece comigo.

BRANKA – E se eu decidir não ser mais tão honesta... tão fiel ao desgosto?

MIKHAIL – E se eu te disser que a nossa charada não tem fuga? Está tarde para corrermos do demônio que nos faz ter essa cobiça.

BRANKA – Será que estamos embriagados?

MIKHAIL – Será que estamos só esquecendo das correntes que nos prendem nas nossas frustrações?

BRANKA – Eu quero uma notícia nova sobre mim.

MIKHAIL – Eu também quero...

BRANKA – Me despede dessa veste ferida?

MIKHAIL – Sabes que se encostarmos nossas vontades nascerá um mundo original, refém de um Deus que só nós dois teremos fé?

BRANKA – Tanto faz o Deus que nosso toque irá parir! Se botoa em minha noite assim um cravo do querer, Erguido de vontades proibidas...Com que força negar esses tombo da solidão? Se você desabrocha o apego, como a luz aborrece o escuro, uma mordida de flor não deveria arder. Com que mão vou negar você, Mikhail? Borrar a graça dessa ilusão? O amor não acende no sentido imundo do outro. E a cor dos meus olhos não mudariam se você fosse um breu. A lucidez dessa nossa novidade, fita meu fardo. Me aventurar nesse apelo, é fugir desse grosseiro chão. Quando em meu jeito se ateia uma brasa, se arriscar em ti acorda minha multidão... empurra minha pressa de se perder na mata da terra louca de quem topa sair da sala-de-espera de si para viver.

(Luz abaixa-se lentamente, Mikhail tira o vestido de Branka. Os dois beijam-se. Black-out. Luz acende levemente na janela do quarto onde encontra-se Mikhail, na boca de cena, limpa um choro, fecha os olhos enquanto um forte vento acarinha sua face.)

MIKHAIL -Você crê que o vento que golpeia agora o meu rosto quer me recomendar alguma palavra-chave para o nome do que sinto agora?

BRANKA – Não sei... A intenção do tapa do vento não me incomoda, Mikhail...acho que a forma de tombar diferente é que individualiza as pessoas! Somos diversos desde o jeito que encaramos a altura da dor até nas intervenções da nossa natureza. O caminho de se desvendar é árduo para todos. O vento também caminha muito para chegar até o nosso rosto. E quem disse que no meio da estrada ele também não perde a opinião, não esquece o que veio levar?

MIKHAIL – Antes de chegar até ti, pensava muito no que teria feito de diferente nas minhas escolhas....Como pode ser tão grado estar com você? Bem com você, Branka...? Cada vez mais me parece que as pistas deixadas para o homem chegar até si, sempre levam ao caos do desencontro.

BRANKA – (Levanta-se e abraça Mikhail) Pára, Mikhail! A vida se torna um caos por si só! Lógico que na maioria das vezes nossos medos diminuem esse trajeto. Eu, por exemplo, fui por anos covarde e a solidão é o único fim que tenho direito!

MIKHAIL – Acha mesmo que tem obrigação de depositar o ponto final antes que o viver se entedie de você? Se já existe a morte, não seria uma prepotência desistir antes dela?

BRANKA – Ué, meu corpo continuará como sempre subindo e descendo escadas, lavando louças, vestindo sapatilhas... Mas se a alma aborreceu, sou pequena demais para fazê-la içar.

MIKHAIL – Pronto. Então deixe ela repousar um pouco solta e vamos comigo desvendar outras ilhas?

BRANKA – Como assim?

MIKHAIL – Vamos fazer uma viagem, mesmo que curta. Sair um pouco desse cenário pesado que estamos.

BRANKA – Você já conhece tantos lugares, Mikhail, qual a graça de me levar?

MIKHAIL – Ué, não conheço nenhum sítio que você tenha visto junto. O fulgor do teu olhar passeando pela inovação há de iluminar até os becos dos recintos mais chatos que já conheci. Qualquer paisagem assistida de mãos agarradas, cria milhares de questão novas dentro dessa vida enxovalhada por um horizonte de respostas infinitas. Vamos, Branka?!

BRANKA – Não sei. Sou uma mulher triste! Não sei quanto tempo me beberia!

MIKHAIL – Não estou convidando a dona triste. Convido essa que esbraseia encostada em meu peito!

BRANKA – Essa eu deixo ir. E Alexei...?

(Afasta-se e recolhe suas roupas)

MIKHAIL – Temos um problema maior que pondera, Branka! Se Alexei existe, e eu sei que existe, ancoramos nas costas novamente nossas aflições. Não temos nem por onde começar!

BRANKA – Mikhail, entenda, se Alexei não existe eu também não existo. O que sou até aqui, são as peças armadas pelo quebra-cabeça do meu cotidiano com ele. Alexei faz parte da paisagem que me tornei. Nessa insônia do meu coração! Eu, sonâmbula, peregrinei meu ser com ele pela trilha da ilusão de existir. Eu não posso simular uma nova pessoa. Sem meu passado com ele, sou ninguém! E confesso que não posso me responsabilizar por quanto vou esquecer, Alexei! A saudade é o único sentimento que guarda rancor!

MIKHAIL – Então cometemos um crime. Como pude esquecer que Alexei sabe todas as teorias dos nossos males. Isso tudo foi proposital... ele conhece como ninguém a fragilidade.

BRANKA – O que está dizendo! Sabe de algo que não sei, Mikhail?

MIKHAIL – (Culpado olha nos olhos de Branka) Preciso entender Alexei de uma vez por todas! (Aproxima-se) Ivan, cometeu mesmo aquele delito?

BRANKA – Precisamos mesmo disso?

MIKHAIL – Você precisa saber o que eu sei e eu preciso me livrar disso.

BRANKA – Estamos embriagados!Já está bom de ousadia por hoje.

MIKHAIL – Prefiro continuar, pelo menos até a volta da casta covardia! Conte-me, Branka, o que aconteceu? A oportunidade de ser franco é um cometa que atravessa o céu da integridade somente uma vez a cada quinze mil loucuras.

BRANKA – Te contaria tudo, Mikhail, porem, alem de mim, carrego nas costas as toneladas da confusão da minha alma.

MIKHAIL – O Peso da alma até que é suportável; o que desgasta é a mala cheia de fraquezas que a fazemos carregar. Solte essa bagagem e me entregue os fatos desse pesadelo. Preciso saber de Ivan! Acredite, isso muda até o gosto desse nosso beijo.

(Os dois se olham, Branka respira e conta)

BRANKA –Ivan e Alexei eram mais que pai e filho, chegavam disputar diariamente quem poderia provar mais ao outro o tamanho da fidelidade daquela parceria! Quando Ivan completou dezoito anos, para coroar o pai, Ivan foi estudar medicina em Moscou! Envolveu-se com uma mulher perversa,Mikhail, ficou noivo da bandoleira...nas férias os dois sempre vinham para esse sitio! Ivan se perdeu na peçonha daquela serpente, essa, jogava-se em cima de Alexei! Eu mesmo testemunhei escondida atrás das cortinas, a malvada tentar convencer Alexei a viver com ela, usando o argumento de que ele merecia uma mulher mais jovem e de que ela não era feliz ao lado de Mikhail. Alexei sempre foi honesto e me contou cada marcha dessa malícia. Alexei então resolveu ameaçá-la e contar tudo ao nosso filho. A cobra foi mais astuta e contou o inverso para nosso filho. Certo dia acredite, a mulher de Ivan convenceu nosso filho de matar o próprio pai! Ivan despejou veneno na bebida do pai! Alexei sobreviveu por um milagre. Passou meses em coma, quando acordou, Ivan já estava preso. Ao descobrir que a mulher havia lhe tapeado por tanto tempo, por pesar de tentar matar o pai, esfaqueou a víbora... suspeito que dai então enlouqueceu.

MIKHAIL –E quando Alexei despertou do coma?

BRANKA– Contei-lhe a verdade! Desde então Alexei e Ivan nunca se encontraram!

(Ivan chocado senta-se pensativo)

MIKHAIL – Não deveria lhe contar, Branka, mas Alexei não foi conferir as teses e sim rever Ivan!

(Silêncio)

BRANKA – Como? Ele abriu as cartas? Ele lhe contou o que Ivan dizia nelas?

MIKHAIL – Ele não as leu! Guardou em uma negra casaca do armário.

(Branka rapidamente abre o armário de Alexei e encontra as cartas no casaco)

BRANKA – Se eu pudesse ao menos entender o combustível que move essa desolação em Alexei, poderia ter lhe amparado melhor.

(Abre lentamente a primeira carta)

MIKHAIL – Não seria mais sensato ler essas cartas amanhã? Já escorremos tanto essa noite...

BRANKA- Só aumentarei a distancia que a agonia irá caminhar até abrir essas cartas...

(Branka lê a primeira carta e cai no choro. Pouco depois lê o final para Mikhail.)

BRANKA – “A faca que cortou nosso laço era cega perto da força do nosso apego, e este se rompeu somente pela eficácia da minha ignorante crueldade diante de seu delicado amor por mim. Depois do que fiz com você, hoje pasmado com minha própria perversidade, só aprendo cada dia mais a não me perdoar. Traí o maior amor do mundo, o teu, meu pai! Não te cobro perdão, só peço a Deus que na próxima vida me deixe ser novamente teu filho, para que eu tenha a honra de te devolver o carinho que sempre me conferiu. Sumiu de mim o sentido de existir, e é assim mesmo que tem que ser. Desculpa, papai! Desculpa...Com amor do teu desleal filho, Ivan!”

(Mikhail senta-se ao lado de Branka)

MIKHAIL – Veja só! Mikhail sabe o calibre da bala que arrojou em Alexei. Apesar da dor, vejo claramente que Ivan está arrependido. Alexei saiu decidido a resolver essa magoa, e tenho certeza que Alexei ao ver esse desgosto do filho será capaz de perdoar. O embate dos dois vai ser de paz.

BRANKA – Será?

MIKHAIL – Tenho certeza.

(Branka dá a carta para Mikhail abrir)

BRANKA – Faça isso por mim.

(Mikhail levanta-se e lê a carta silenciosamente. Em seguida olha para Branka sem coragem)

BRANKA – Que cara é essa?

MIKHAIL – É uma carta do diretor da penitenciaria.

BRANKA – (Exalta-se) Conte logo, não mereço esse suspense.

MIKHAIL – Informam que Ivan suicidou-se a mais de um ano.

(Branka sem agüentar a própria dor, em um sentimento baralhado de cólera de si, dolo, e agonia, cai no chão aos poucos, em lamúria)

BRANKA – Estou me sentindo sórdida! Vontade de me arrancar de mim mesma! Fugir dessa imunda que a poucos minutos atrás estava a me oferecer para outra história. Meu filho está agora plantado em alguma cova de indigente, roído pela terra, talvez até cumprindo a sina dos seus desacertos, incendiado no inferno... Alexei adoentado, apostado sozinho por algum canto de Moscou, sem mim, sem o filho... Enquanto eu me enroscava na cama com você, a procura de acender algum fulgor, um amor moderno, ou qualquer disparate para fugir da minha própria vida. Eu sou um assombro, tenho medo do que sou capaz. Tentei fugir da dor, mas esquecida que eu mesma era ela.

(Branka vendida ao choro. baixa a cabeça escondendo-se de si. Mikhail a pega no colo e coloca na cama. Ela estende o rosto no travesseiro e chora feito criança.)

MIKHAIL – Depois de tudo que fiz, seria uma hipocrisia dividir essa dor com você.

BRANKA – Onde você vai, Mikhail!

MIKHAIL – Vou aguardar a aurora e buscar Alexei em Moscou.

(Branka entrega-se a cama, fecha os olhos e chora. Mikhail parte.)